Rede Sustentabilidade: A rede e o anzol

Há um silêncio ensurdecedor no documento que funda novo partido: critica-se insustentabilidade, mas não as relações sociais que a provocam.

Nosso sistema partidário evoluiu ao longo das últimas décadas transitando de um bipartidarismo domesticado a um multipartidarismo insosso. O esforço empreendido por algumas lideranças políticas, sob iniciativa de Marina Silva, na criação da #Rede Sustentabilidade merece algumas reflexões, para não cairmos no maniqueísmo dominante entre os principais partidos brasileiros e no pensamento político rasteiro.

Ainda que não se deva julgar as pessoas e as organizações pelo que elas pensam de si próprias, o anúncio de suas intenções, os programas propostos e o espaço desejado de inserção revelam os possíveis caminhos que devem ser trilhados no futuro.

A #rede, como se autorefere, reúne pessoas e grupos oriundos de outros partidos e organizações. Seu manifesto e estatuto propõem reinventar a política brasileira, recuperar o caráter republicano e democrático, num modelo de organização mais horizontal e aberta, procurando congregar a diversidade em torno de uma ação ética e transformadora da prática política tradicional, clientelista e privatista.

Os documentos aprovados, no encontro de 16 de fevereiro de 2013, e registrados em cartório exaltam a necessidade de renovação da política, da gestão do Estado e das conexões entre os cidadãos e seus representantes numa teia viva de interações capazes de construir um novo projeto de desenvolvimento baseado na sustentabilidade, a inclusão a diversidade e a igualdade, levando em conta a “ética da urgência”.

Os fundadores da #rede propõem algumas mudanças no funcionamento do novo partido como, por exemplo, a limitação das doações de campanha, a proibição da aceitação de doações de empresas de armas, cigarros, bebidas e agrotóxicos, além de permitirem as “candidaturas cívicas independentes”, de pessoas com compatilibidade programática, mas não filiadas à #rede.

Ainda que a ideia de rede seja interpretada como algo vivo e não hierárquico, o estatuto da #rede escorrega e não foge das normas legais acerca das atribuições de cada esfera organizacional. Ao mesmo tempo, os mecanismos ditos inovadores indicam problemas incontornáveis, como o fato de a legislação vigente (lei 9504, art. 9º) não permitir a eleição de cidadão que não seja filiado a um partido político.

Note-se que a exclusão de alguns setores do processo de doação de campanha (armas, cigarro, bebidas e agrotóxicos), além de pouco eficaz não aborda de frente alguns problemas apontados nos documentos aprovados. Embora o item que regulamente as doações sugira que caso existam contradições entre os princípios que orientam a #rede e as atividades dos doadores elas devem ser suprimidas, a abordagem desse tema aponta ou a submissão à lógica mercantil vigente, da economia verde, ou o escancaramento de conflitos de grande monta.

Por exemplo, o deputado do PSDB de São Paulo, agora na #rede, Walter Feldman, declarou à justiça eleitoral que dos quase 4 milhões de reais recebidos em doações em 2010, metade foi oriunda de empresas ligadas ao mercado imobiliário (Bélgica, Multiplan, Wtorre), à construção civil (OAS, Camargo Corrêa), à indústria química (Suzano, Bandeirante, Votorantim), e de papel e celulose (Klabin).

Não que o setor da construção civil e da indústria química sejam, por si sós, ética e moralmente condenáveis em função de suas atividades. Mas o indicador de que a #rede propõe um novo modelo de desenvolvimento baseado na ecologia, na sustentabilidade, na inclusão fatalmente colocará em xeque o modelo sobre o qual tais empresas estão alicerçadas.

Sobre a questão programática e ideológica, ainda que não tenhamos em mãos um programa para ser analisado, o manifesto de fundação é pouco preciso, para não dizer ambíguo, em relação a diversos temas. Não precisamos de uma armadura que nos amarre a algum campo, mas achar que a dualidade entre direita e esquerda está superada é de um modismo perigoso.

Não que compartilhemos desse maniqueísmo que assenta o PT e o PSDB de cada lado do espectro partidário, ainda que a prática tenha mostrado que isso não seja tão real, mas os limites são claros em não indicar opiniões acerca dos debates ideológicos. Não assumir uma referência política poderia até refletir o desgaste que essa polarização passou, mas não ter um posicionamento indica a permanência de contradições e conflitos no interior da #rede que provavelmente irão se manifestar em breve.

Num sistema partidário como o nosso, onde o número de partidos está descolado da real diversidade política e ideológica, o surgimento de uma nova iniciativa desse tipo deve ser bem-vindo, em particular se a crítica se transformar em movimento em direção a algo novo, capaz de superar os fisiologismos e os sectarismos inerentes ao nosso espectro político partidário – mas que tal movimento não nos faça esquecer de suas contradições fundantes, as quais podem limitá-lo na origem.

Por exemplo, definir a premissa da sustentabilidade como eixo sem realizar uma crítica radical sobre a lógica de funcionamento do capitalismo é abrir espaço para diversas contradições.

“Todos os setores da sociedade devem se comprometer com a preservação ambiental e, ainda, responder às necessidades da população global, que deve chegar a 9 bilhões de pessoas até 2050.”(…) “É preciso um esforço conjunto, com diferentes pontos de vista, para tomadas de decisão que enfrentem este grande desafio do século 21”. Esse texto poderia compor o leque de reflexões apresentadas pela #rede, no entanto faz parte do sitio da empresa Monsanto, líder do setor de agrotóxicos e transgênicos no Brasil.

Na prática, a #rede assenta-se muito mais numa perspectiva de crítica ética e moral que, propriamente, numa análise concreta acerca dos padrões de reprodução do capital. A lógica de funcionamento do sistema de reprodução de valores de troca, ou seja, de produção de mercadorias tendendo ao infinito e que exige, para isso, a ampliação das fontes energéticas e de matérias-primas, numa escalada incompatível com as bases materiais de que dispomos no planeta, não é atacada pela #rede.

Não é possível contestar a sociedade de consumo instituída sem atacar os mecanismos que a mantém funcionando e se reproduzindo. Esse talvez seja “o silêncio ensurdecedor” do texto fundador da #rede. Pode até ser que estejamos colocando o carro na frente dos bois, mas não podemos deixar pra apontar essas limitações quando o carro começar a descer a ladeira e só tivermos um anzol para segurá-lo.

* José Roberto Cabrera é mestre e doutor em Ciência Política Unicamp, Professor Esanc e Unip Campinas-SP.

** Publicado originalmente no site Outras Palavras.