Mães que abandonam e mães abandonadas

A tragédia do abandono de crianças se repete, inunda o noticiário e comove a opinião pública sem suscitar ações capazes de solucionar, ou pelo menos atenuar significativamente os problemas sociais que a motivam. Para transformar essa realidade, precisamos superar mitos, temores e maniqueísmos.

De tempos em tempos somos surpreendidos por notícias inquietantes, e muitas vezes chocantes, que se multiplicam em muitas interrogações escandalizadas, em muitas notícias da mídia, em muitas declarações indignadas, mas em poucas ou nenhuma iniciativa que seja efetiva na busca da solução do problema.

Recentemente tivemos vários casos de crianças abandonadas nos mais diferentes locais públicos, algumas correndo perigo de vida, estarrecendo a população. É no rastro das emoções que tais acontecimentos suscitam que a nação inteira se viu mobilizada.

Nossa moral social se indigna com o destino dado a esses inocentes e clama por punição para essas “mães desnaturadas”. Bebês encontrados na lagoa, no metrô, na porta de um estranho, no lixo, sempre causam enorme comoção, e muitos se declaram incapazes de entender um ato como esse.

Como compreender que justamente aquela mulher que deveria ter o amor maior, o desejo do cuidado especial ao filho, o “instinto” de proteção, seja capaz de uma atitude desse teor?

O mito do amor materno nos impede de examinar com objetividade e clareza a questão para que possamos encontrar as soluções necessárias e adequadas para tal quadro, que retrata uma realidade social crônica, grave, mas que só vem à tona quando bebês boiam em lagoas.

Espetáculo do “bem” e do “mal”

A mídia, por sua vez, acredita dar conta de seu papel social entrevistando mães que vivem com numerosos filhos, mulheres que esperam há anos pela adoção e outras que se sujeitaram aos processos dolorosos da fertilização assistida para tentar ter essa experiência, dita, incomparável. Em contraste com as atitudes de abandono, essas experiências reforçam o estigma que recai sobre a mãe quase assassina, “abandonante”, que contraria as “leis naturais”, cuja  “monstruosidade” não merece compreensão.

Não há entrevistas com as mães que não permanecem com os filhos; ninguém pergunta a elas o que as leva a tomar tal decisão. A respeito das que abandonam os filhos, ou mesmo daquelas que, embora com muita dor, entregam-nos em adoção, constroem-se hipóteses, especula-se, critica-se, julga-se e condena-se, mas poucos querem se aproximar, ouvir e, efetivamente, saber.

Poucos querem penetrar no mundo sombrio dessas almas para desvendar seus segredos, apurar suas dores e compreender seu desespero, sua loucura e até mesmo sua “maldade”.

Os bebês? Esses, todos querem. Os candidatos aparecem às centenas, todos indignados querendo salvar de um destino cruel a infeliz criança. Um casal felizardo, um solteiro ou solteira com muita sorte, terá satisfeita sua ânsia por um filho. Os muitos “braços abertos” que surgem nesses momentos de comoção para receber as crianças abandonadas são noticiados como que a confirmar a “bondade” da maioria, isolando ainda mais as mães que abandonam em sua solitária “maldade”, reconfortando o público leitor, ouvinte e telespectador.

Passa o tempo, cai o pano do teatro de horrores, calam-se as vozes e tudo é esquecido, até que apareça o próximo bebê num lugar diferente daquele em que julgamos que deveria estar: os braços da mãe.

Enquanto isso, as mães “desnaturadas” silenciam na prisão, correm o risco de serem mortas. Outras nunca serão encontradas ou identificadas, e o problema, embora esquecido, persiste.

Bebês continuam nascendo, mães continuam com a mesma dificuldade de permanecer com eles. Nada mudou. Não se criaram políticas públicas de atendimento, a população não teve sua compreensão do fato ampliada, a mídia pouco se esclareceu e a rede paralela continua forte e firme colocando bebês em famílias que os esperam ansiosamente sem que ninguém se indigne, se contorça ou diga uma palavra para reclamar, denunciar. Julga-se, critica-se a mulher que pare, mas que não pode, e talvez não deva mesmo, permanecer com o filho a que deu à luz.

As mulheres continuam sem saber o que fazer com os filhos indesejados. Os pretendentes a pais continuam ansiando pelo recém-nascido que imaginam lindo, sem marcas, sem história, a quem poderão criar à sua imagem e semelhança e cujo passado é, de preferência, “apagado”.

Letícias esquecidas, e invisíveis

A “Letícia da Pampulha”, deixada na famosa lagoa da capital mineira e que se tornou um ícone nesse submundo que todos tentam ignorar, tal como todos os bebês encontrados em nossas cidades nas mais diferentes condições, crescerá, pelo menos no imaginário coletivo, feliz e saudável, esquecida de um destino quase funesto. As sombras do esquecimento e a saturação da mídia se encarregarão de ocultar outras tantas Letícias nascidas aqui e acolá, porém não desejadas, nascidas de uma mãe que, se lhes possibilitou a vida, não se sente em condições de garantir seu sustento, sua educação, sua criação.

A roda da vida não para porque os jornais pararam de noticiar, mas nós não nos lembramos mais delas, não nos escandalizamos mais, ignoramos a realidade social que se perpetua e relega ao esquecimento essas mulheres e a necessidade de que medidas urgentes sejam tomadas para que as lagoas, os bancos de praça ou o piso do metrô não sejam mais o berço de tantas crianças.

Certamente nos horrorizamos com a gravidade dos atos que certas mulheres tomam em relação aos filhos, mas não deixamos de nos espantar com a frieza e o distanciamento com que tratamos um problema que demanda solução e em relação ao qual agimos como se ele não nos dissesse respeito. Não encontramos “justificativa” para tais atos, mas eles podem ser compreendidos quando examinamos a realidade mais de perto (compreender não é concordar nem aceitar com naturalidade).

Moralmente incompreensível e inaceitável é que nada façamos e apenas fiquemos esperando por novas Letícias quando há tantos anjos, talvez não tão brancos, nem tão belos a nossos olhos, nem recém-nascidos, e que esperam nas instituições e nas ruas de nosso país, sem que nossa compaixão e indignação os reconheçam como tão merecedores de acolhimento, afeto, família e futuro quanto os bebês das manchetes.

Nós, que nos chocamos com a irresponsabilidade das mães que abandonam os filhos, precisamos assumir a responsabilidade pela situação de abandono dessas mulheres numa realidade social da qual fazemos parte. E as nossas ações serão mais bem-sucedidas se, além disso, tivermos a coragem de assumir nosso desconforto ao lidar com situações que expõem velhos mitos a recobrir nossas próprias imperfeições como mães e pais meramente humanos, cujo amor nem sempre  é tão “natural”, automático, infinito ou incondicional.

Nossa proposta é a de que conheçamos minimamente essas mães para que a mentalidade em relação a elas possa mudar e, assim, iniciativas necessárias e urgentes possam se multiplicar e transformar a sociedade, tornando-a efetivamente mais justa e acolhedora.

* Maria Antonieta Pisano Motta é psicóloga e psicanalista, autora do livro Mães Abandonadas: a Entrega de um Filho em Adoção (Cortez, 2008).

** Publicado originalmente no site Le Monde Diplomatique Brasil.