São Paulo, capital do cinema japonês

Livro do nikkei Alexandre Kishimoto trata da importância histórica das salas de cinema da Liberdade para a comunidade japonesa e para os cineastas brasileiros, nas décadas de 1950 e 1960. Foto: Divulgação

Agência Fapesp – O bairro japonês de São Paulo – Liberdade – tem sua origem estreitamente associada ao cinema japonês e ao surgimento das salas de exibição de filmes na região – que apresentavam produções tão diversas quanto histórias de samurai e da Yakuza (a máfia japonesa), passando por melodramas e obras intimistas, consideradas cults por cinéfilos e cineastas brasileiros.

Até meados do século passado, a população imigrante e seus descendentes nikkeis haviam formado o primeiro “bairro japonês” do centro, ao redor da rua Conde de Sarzedas, e distribuíam-se por vários bairros da cidade, como Pinheiros, Campo Limpo, Itaquera e Jabaquara. A ordem para que os japoneses deixassem suas casas, durante a Segunda Guerra Mundial, no entanto, dispersou a população desse primeiro bairro oriental. Esses imigrantes foram perseguidos e cerceados durante o conflito mundial, por causa do alinhamento do Japão com a Alemanha e os demais países do Eixo.

O livro do antropólogo Alexandre Kishimoto Cinema Japonês na Liberdade conta agora os detalhes dessa história. “A inauguração em julho de 1953 do cine Niterói, na rua Galvão Bueno, uma sala de 1.200 lugares, foi responsável pela formação de todo um comércio japonês na região, que amadureceu com o surgimento, nos anos seguintes, de outras salas, como os cines Tokyo, Nippon e Joia, nas imediações, dando origem ao que hoje conhecemos como Liberdade”, afirmou Kishimoto, pós-graduado pela Universidade de São Paulo (USP).

O livro foi lançado em março pela Editora Estação Liberdade, com apoio da Fapesp e da Fundação Japão. Desenvolvido originalmente como tese de mestrado da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP), a obra do nikkei Kishimoto trata da história dessas salas de cinema na Liberdade, de sua importância para a comunidade japonesa e seus descendentes e para o público de cinema, críticos e cineastas brasileiros, como Walter Hugo Khouri (1929-2003), Carlos Reichenbach (1945-2012), Roberto Santos (1928-1987) e João Batista de Andrade, entre outros.

“Eu tinha essa memória de quando era criança, de ser levado por meus pais a algumas dessas sessões nos cinemas da Liberdade, em companhia dos meus avós, isso já na década de 1980”, disse o autor. Ele contou que teve a ideia da tese em 2003, ao participar de um trabalho de organização de videotecas de filmes brasileiros em escolas públicas da zona leste de São Paulo. “Para obter os filmes que rodariam nas videotecas tive de conversar com cineastas como Carlos Reichenbach, diretor de Alma Corsária, e João Batista de Andrade, de O homem que virou suco, e soube que eram assíduos frequentadores daquelas salas na Liberdade, entre 1950 e 1960. Foi aí que percebi como esses cinemas foram importantes não apenas para o público japonês, mas também para os cineastas, críticos e cinéfilos da cidade de São Paulo.”

Diversidade garantida

A capital paulistana era na época a cidade ocidental que recebia a filmografia japonesa mais diversificada para exibição. O cinema japonês passou a ser conhecido no Ocidente depois da premiação de Rashomon, do cineasta Akira Kurosawa, com o Leão de Ouro, no Festival de Veneza, em 1951, e as metrópoles ocidentais começaram a se interessar pela exibição de filmes japoneses. Mas à maioria das cidades chegavam os filmes de samurai ou de época, além das obras premiadas nos festivais internacionais, conta Kishimoto, no livro.

Em São Paulo, a história foi completamente diferente. Por ter uma concentração muito grande de moradores japoneses e seus descendentes, desde os anos 1930 e 1940 eram comuns as sessões de cinema japonês nos bairros onde residiam e em locais do centro da cidade, como os cines Theatro São Paulo, o cine Odeon e o cine São Francisco. Com a abertura do cine Niterói, Tokyo, entre outros, na região da Liberdade e o sucesso das sessões de cinema japonês, os estúdios cinematográficos das companhias japonesas abriram escritórios na cidade.

“Por essas características, São Paulo recebia uma produção muito maior, menos filtrada e, portanto, mais diversificada do que as obras enviadas às demais metrópoles ocidentais”, disse Kishimoto, lembrando que não levou muito tempo para que essas empresas japonesas transformassem essas salas de cinema em exibidoras exclusivas de suas produções. Inicialmente frequentadas por japoneses e seus descendentes, elas foram, aos poucos, atraindo cinéfilos, cineastas não nikkeis e críticos, como Paulo Emilio Salles Gomes e Rubens Biáfora, que ao descobrirem tal diversidade passaram a escrever sobre esses filmes nos jornais.

Kishimoto afirmou que já existiam estudos sobre o cinema japonês quando definiu sua pesquisa de mestrado, mas eles eram restritos. Focalizavam a importância dessas salas para o público japonês ou tratavam da relação do público não nikkei, de cineastas, críticos e cinéfilos brasileiros com a produção cinematográfica. “O meu desafio foi buscar uma perspectiva que integrasse esses dois públicos e suas experiências.”

Em seu livro, Kishimoto contempla desde o trabalho dos projecionistas ambulantes, que no final dos anos 1920 já percorriam as cidades do interior do Estado mais povoadas pela colônia para apresentar as sessões de cinema – num período marcado pela atuação dos pioneiros da exibição Masaichi Saito e Kimiyasu Hirata –, até as salas de cinema da Liberdade, cuja programação repercutiu na produção dos cineastas brasileiros. “Essa influência foi marcante e pode ser observada em obras como A hora e a vez de Augusto Matraga, do Roberto Santos, inspirado em filmes de samurai de Masaki Kobayashi e Keisuke Kinoshita, como Murmúrios do rio Fuefuki .”

O papel do cinema japonês em São Paulo na pacificação da própria colônia também é abordado no livro, tendo como pano de fundo o contexto político do pós-guerra e o conflito entre derrotistas e vitoristas, uma vez que parte dos imigrantes não acreditava que o Japão havia perdido a guerra (os vitoristas) e combatiam os que aceitavam a derrota (os derrotistas). “Essa divisão entre os imigrantes japoneses e descendentes no Brasil durou quase dez anos e a hipótese que defendo no livro é a de como essas salas (paralelamente a outros episódios) contribuíram para a pacificação desses dois grupos.”

Cinema Japonês na Liberdade
Autor: Alexandre Kishimoto
Lançamento: março de 2013
Preço: R$ 48,00
Páginas: 304

* Publicado originalmente no site Agência Fapesp.