Terra de ninguém

"Aqui a gente ostenta contaminação", canta o rapper Davidson, aluno da USP Leste. Foto: Marcos Méndez
“Aqui a gente ostenta contaminação”, canta o rapper Davidson, aluno da USP Leste. Foto: Marcos Méndez

 

Os imbróglios que levaram à interdição da USP Leste após uma série de problemas ambientais e acusações de má gestão.

Seja bem-vindo a Each-USP/ Each ostentação/ Só que aqui a gente ostenta na contaminação, canta o rapper Davidson Cruz , 23 anos, aluno do último período do curso de Gestão Ambiental da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (Each). Criada em 2005 e sediada no bairro de Ermelino Matarazzo, zona leste de São Paulo, a Each mais conhecida como USP Leste, começou 2014 com seus alunos e professores impedidos de entrar na universidade por uma interdição judicial. Às margens do Tietê, o solo do campus está contaminado com gás metano, altamente inflamável, proveniente do descarte do desassoreamento do rio. Além do subsolo e de um aterro ilegal depositado no campus, outros problemas tornaram impossível a permanência humana no local. Pombos infestaram o local, a água dos bebedouros foi contaminada pela ausência de proteção adequada e limpeza dos reservatórios e faltam equipamentos de segurança contra incêndio. Diante do quadro, a reitoria silenciou, segundo professores e alunos ouvidos pela reportagem – e para desespero dos mesmos.

“Eu classificaria como total descaso a postura da USP”, reclama Davidson, que gastava não mais que 15 minutos para se deslocar de skate pela ciclovia da sua casa até a unidade. Para repor as aulas, ele e outros estudantes, além dos próprios docentes, foram provisoriamente para o campus da USP no Butantã, região oeste da cidade. Utilizando trem e metrô, o tempo de mobilidade saltou para até duas horas e meia.

A interdição, feita às pressas, na opinião dos professores, causou transtornos. “Tem pesquisador desesperado, porque o material está todo lá e é fruto de coleta de muitos anos de pesquisa, que depende de refrigeração. Muitos docentes não têm para onde levar o material”, conta Michele Schultz, professora de Ciências Biológicas e Saúde da unidade. O prejuízo, diz, é difícil de calcular. “Para as nossas carreiras foi um baque enorme.”

Segundo Michele, desde a escolha do local já se sabia que o terreno estava contaminado por metano. Originário da decomposição de material orgânico oriundo do Tietê, sua concentração é possível em toda a extensão da marginal. No caso da USP Leste, além do material do rio, havia também a possibilidade da presença de contaminantes depositados no local por antigas fábricas da região. “Era um terreno com problemas, porém contornáveis”, explica Marcos Bernardino de Carvalho, geógrafo e professor do curso de Gestão Ambiental na Each. Era necessário, porém, que a universidade traçasse um plano para extrair os gases do subsolo e construísse prédios compatíveis com a situação delicada de sua locação.

Antigo reduto industrial, Ermelino Matarazzo faz divisa com a cidade de Guarulhos. Com 110 mil habitantes, é uma região carente, marcada por problemas nas áreas de segurança, cultura e saúde. Cortado por uma linha de trem metropolitano, que vai da região central até o bairro Calmon Viana, uma de suas estações – a USP Leste – foi construí-?da especialmente para atender os alunos da universidade.
Questionado sobre uma solução para o problema do metano, o recém-empossado reitor da USP, Marco Antonio Zago, afirma estarem as edificações existentes assentadas sobre colchões de britas, o que drenaria o gás existente sob o pavimento térreo. “Vamos fazer do campus da USP Leste um modelo de ocupação segura e sustentável, em uma área que estaria, de outro modo, inutilizada para a ocupação humana”, respondeu por e-mail.

Diante dos conhecidos problemas do solo, o que explica a construção do campus que abriga, aproximadamente, 4,5 mil alunos nos dez cursos de graduação, 285 professores e 200 funcionários?
Entre as causas para a construção do campus, ao custo para os cofres do governo estadual de São Paulo de 53 milhões de reais, segundo o geógrafo Carvalho, estão a existência de um movimento popular por educação na região, além do debate interno na USP a respeito da expansão do número de vagas e da necessidade de se levar a universidade para outros pontos da cidade. “O fato de existir esse movimento casou com a disponibilidade de expansão da USP”, diz Carvalho, autor de um artigo sobre a criação da Each. Outra motivação seria estancar o processo de ocupação e urbanização do Parque Ecológico do Tietê pela instalação de um campus universitário. “O que não se esperava é que a ida da USP pudesse piorar a situa-?ção ambiental”, afirma o professor do curso de Gestão Ambiental.

Por conta de problemas com o subsolo da região, prejudicado pelos descartes de indústrias químicas, a água do lençol freático do local é imprópria para consumo. “Eles tiveram de fazer uma adutora, por baixo da linha do trem, para alimentar a Each com água da Sabesp”, afirma Michele. Mesmo essa água, que alimentava torneiras e bebedouros, tornou-se foco de problemas. Segundo Adriana Tufaile, professora do Curso de Gestão Ambiental e Ciências da Natureza, a água do reservatório estava com coliformes acima do limite e turva. “Essa análise foi feita pela Sabesp. Descobrimos que fazia um ano e um mês que eles não eram limpos”, conta Adriana, diretora da Associação dos Docentes da USP (Adusp). Como a caixa d’água ficava abaixo do limite da terra contaminada e não tinha proteção contra entrada da água da chuva, a professora acredita que a água suja entrou no reservatório. “A improbidade administrativa também descuidou da higiene da nossa água”, diz.

Antes da interdição, a USP foi autuada e multada pela Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb) por não cumprir as exigências determinadas na Licença Ambiental de Operação, como a extração do metano do subsolo e a retirada de terras contaminadas que foram descartadas na região da universidade em 2011.

As condições ambientais do campus agravaram-se quando toneladas de terra de origem desconhecida foram despejadas dentro da universidade, localizada em uma área de proteção ambiental, sem autorização ou licenças ambientais necessárias. De acordo com o documento da ação civil pública elaborado pelo Ministério Público Estadual, entre outubro de 2010 e outubro de 2011, cerca de 200 caminhões entraram diariamente no campus, carregando, cada um, 18 metros cúbicos de terra de origem desconhecida. No total, foram despejados 109 mil metros cúbicos de terra, posteriormente classificada como contaminada, nas dependências da universidade. O diretor da USP Leste à época, José Jorge Boueri Filho, foi avisado da movimentação por ?e-mail enviado pela professora Rita Giraldi em 20 de janeiro de 2011. O e-mail foi citado na ação civil pública que o Ministério Público Estadual moveu contra a universidade em 2013.

Em junho do mesmo ano, o diretor-geral do Parque Ecológico do Tietê, Valter dos Santos Rodrigues, encaminhou uma notificação pedindo a paralização do aterro, com a justificativa de que a universidade encontra-se em uma área de proteção ambiental. A movimentação, porém, continuou até outubro de 2011. Em setembro de 2013, Boueri foi afastado da função por problemas de saúde, pouco depois de professores e alunos entrarem em greve, motivados pela questão ambiental do campus. A reitoria da USP afirmou que foi instaurado um processo administrativo contra o diretor para apurar as responsabilidades no caso.
Deflagrada pela instalação de placas que informavam a presença de “contaminantes com riscos à saúde”, a primeira paralisação começou no dia 10 de setembro e durou 50 dias.

“Mesmo se a terra fosse limpa, já seria um problema ambiental, pois o seu deslocamento provocou desmatamento”, afirma a professora e diretora da Adusp Adriana Tufaile. “Além disso, a terra veio com entulho de construção civil e contaminantes capazes de causar danos sérios à saúde.”
Relatório elaborado pela empresa Servmar, contratada pela USP para avaliar o impacto ambiental em fevereiro de 2012, aponta concentrações acima do normal de vários compostos na área aterrada, como fenol, cresol, naftaleno, benzeno e tolueno. O documento conclui que as concentrações acima dos padrões ambientais para o aterro são prejudiciais à saúde humana e podem causar “câncer e/ou efeitos toxicológicos não carcinogênicos”. Auto de infração expedido pela Cetesb, em agosto de 2013, determinou a remoção do solo depositado, bem como outras dez exigências relativas ao manejo do metano no subsolo e da água subterrânea. A USP teve 60 dias para apresentar uma solução para os problemas.

Em 16 de dezembro de 2013, as aulas foram suspensas novamente por conta de uma infestação de pombos que interditou três salas de aula e também pela constatação da Sabesp de que a água dos bebedouros estava turva e com presença de bactérias. Sociólogo e professor do curso de Gestão de Políticas Públicas, Jorge Machado foi um dos afetados pelo problema com os pombos. “Precisei fazer tratamento médico com dermatologista”, afirma. Ele também sofreu com a transferência das aulas para a zona oeste. “Emprestaram um lugar no Butantã, mas lá eu não tinha um ramal próprio ou impressora”, reclama.
“Eu estou coberta de reações alérgicas em razão da minha sensibilidade e dos contaminantes”, afirma Rosangela Fatima Toni, 57 anos, aluna do curso de Gestão Ambiental. Rosangela, que trabalha como costureira e mora em Guarulhos, também credita aos problemas ambientais do campus seu diagnóstico de hepatite A e B. “Fica difícil provar que foi pela contaminação, mas quem tem de provar que não é são eles”, explica Rosangela, que fez um boletim de ocorrência e uma reclamação junto ao Ministério Público. “Para mim é uma vitória muito grande estudar na USP, mas tudo ali contribuiu para jogar nossas expectativas ao nível do chão.”

Os docentes afirmam que só voltarão ao campus quando todas as exigências da Cetesb forem cumpridas e não houver mais riscos à saúde. Com a proximidade da matrícula e da recepção dos calouros, o tempo para a resolução dos problemas ficou mais curto.

Por e-mail, o reitor Marco Antonio Zago respondeu que “a Universidade tem trabalhado intensamente na resolução do passivo ambiental da área e, do ponto de vista jurídico, para a liberação da Escola. Por outro lado, estudos têm sido feitos quanto a alternativas de espaço, caso a interdição se mantenha”.
Zago afirmou ainda que tem “apreço especial” pela unidade da zona Leste e que pretende trabalhar no longo prazo para transformar a Each em uma unidade de projeção dentro da universidade e, ao mesmo tempo, uma ferramenta de integração. “O objetivo fundamental da USP Leste é fazer a integração com a população e isso não aconteceu de maneira vigorosa, ainda que existam alguns programas de atendimento”, afirma. Segundo o reitor, outras questões, como a infestação de pombos ou a contaminação da água, já foram resolvidas no âmbito da própria Each.

No entanto, até o fechamento da reportagem, o local para o início das aulas ainda era incerto. Sem acesso ao campus da Each, a solução seria alocar a comunidade acadêmica em outro prédio público da região. Mas, até o momento, nada havia sido resolvido. “A gente não sabe exatamente o porquê dessa falta de ação, porque vai ser um ônus para o governo do estado, ainda mais em ano eleitoral. E foi um projeto eleitoreiro por duas vezes, inclusive no horário eleitoral aparecia o prédio da USP Leste”, relata Michele Schultz.

Desenhada para acolher um projeto dito inovador, a USP Leste oferece 1.020 vagas a cada vestibular. Como o regimento da USP proíbe a repetição de cursos na mesma cidade, todas as graduações ofertadas na Each são não tradicionais, entre elas Gestão Ambiental, Lazer e Turismo, Obstetrícia e Ciências da Atividade Física. Os cursos não têm departamentos e são marcados pelo estímulo dado aos alunos para elaborar propostas de intervenção na região onde a universidade está instalada. O caminho, porém, é tortuoso. A unidade enfrentou altas taxas de evasão nos novos cursos e também resistências do mercado de trabalho. Em 2011, 37% dos alunos da unidade abandonaram os cursos. Egressos do curso de Obstetrícia, por exemplo, enfrentaram batalhas judiciais para conseguir registro profissional nos conselhos Regional e Federal de Enfermagem, apesar de o bacharelado ser reconhecido pelo Conselho Estadual de Educação desde 2008.

Assim como acontece nos demais campi, os alunos ingressam por meio de vestibular realizado pela Fuvest. As notas de corte e o número de candidatos por vaga, em geral, são mais baixos do que a média dos cursos ofertados no Butantã. O curso menos concorrido na unidade, de Ciências da Natureza, teve 2,6 candidatos por vaga. O mais concorrido foi Têxtil e Moda, com 12,5 candidatos por vaga ofertada. O perfil dos alunos é menos elitizado que o encontrado normalmente na Cidade Universitária. Apesar de a maioria ainda residir em outras áreas da cidade, por volta de 40% dos estudantes da Each vivem na zona leste de São Paulo.

“É muito simbólico depositarem lixo na zona leste, que é uma região que sempre foi desvalorizada. Mas não acho que isso aconteceu porque estamos na zona leste, mas sim porque a universidade viveu uma fragilidade administrativa. Foi uma gestão autoritária, que desrespeita a comunidade em geral, e nós fazemos parte dessa comunidade”, afirma Elizabete Franco, professora na Each e membro da Adusp, a Associação de Docentes da USP.

“A ideia era ser uma coisa inovadora, mas falta direção, parece que estamos abandonados”, reclama Paulo Borges, 34 anos, aluno do curso de Ciências da Natureza. Egresso da escola pública, Borges mora em Ribeirão Pires, região metropolitana de São Paulo. “Nossa esperança é de que as novas direções da Each e da reitoria da USP melhorem o diálogo para chegar a uma solução o mais rápido possível.”
Júlia Mafra, 23 anos, aluna do curso de Gestão de Políticas Públicas, também se apaixonou pela proposta curricular da unidade. Moradora da zona norte da cidade, Júlia fez parte do comando de greve dos alunos no ano passado e participou da ocupação da diretoria da USP Leste, que durou 16 dias e terminou com a reintegração de posse pela Tropa de Choque da PM.

Paulo e Júlia estão preocupados com o futuro da universidade. “Não vamos voltar para um campus que não é seguro, e o Butantã também não tem espaço para todos nós”, afirma a universitária. “A proposta era levar uma universidade pública para a zona leste. Não podemos deixar essa história toda para trás por causa da má gestão da USP.”

Davidson Cruz, que apresentará sua música de protesto em um dos seminários organizados para recepcionar e explicar aos novos ingressantes da USP Leste os problemas da unidade, está sem perspectiva de como terminará o curso de graduação. “A gente fica desesperado. É um problema atrás do outro e não sabemos o que vai vir depois.”

* Publicado originalmente na edição 84, de março de 2014  da Carta na Escola e retirado do site Carta na Escola/Carta Capital.