A história do escravo que, aos 14 anos, sonhava em ser jogador de futebol

2Encontrei com Marinalva Dantas, auditora fiscal do trabalho e uma das mães da política de enfrentamento ao trabalho escravo contemporâneo, na semana passada. Relembramos operações de fiscalização coordenadas por ela que resultaram em libertações de trabalhadores que tive o triste privilégio de cobrir.

“Leonardo, lembra aquele garoto para quem você deu a bola? Descobri que era filho de um francês, daí os olhos claros. O pai foi embora após engravidar a mãe dele, que trabalhava em um bordel.”

Puxa, faz tempo isso… Dezembro de 2001, cinco anos depois de 19 sem-terra serem mortos na “curva do S” da rodovia PA-150 pela polícia militar do Estado do Pará, acompanhei um resgate de trabalhadores em Eldorado dos Carajás. Dentre eles, Jonas.

Cerqueiros perfuravam o chão, plantando mourões e passando arame por quilômetros a fio sob o sol forte da Amazônia. O serviço era pesado: dependendo do relevo, a cabeça ardia por dias até que se completasse um quilômetro de cerca. O pequeno açude, turvo e sujo, servia para matar a sede, cozinhar e tomar banho. Um perigo, pois a pele ficava impregnada com o veneno borrifado para tratar o pasto. Dessa forma, a terra vai se dividindo – não entre os cerqueiros, que continuarão sonhando com o dia em que plantarão para si, mas em grandes pastos para os bois. Dentre os trabalhadores, olhos claros e pele queimada, Jonas, de 14 anos.

Analfabeto, me contou que morava em uma favela no município com a família adotiva e ia ao campo para ganhar dinheiro. Trabalhava desde os 12 para poder comprar suas roupas, calçados, fortificantes e remédios – até então, já tinha pego uma dengue e cinco malárias. Com o que ganhava no serviço, também pagava sorvetes e lanches para ele e seus amigos. E só. Segundo Jonas, a adolescência não era tão divertida assim: “brincadeira lá é muito pouca.”

A lei é bem clara – nessa idade, permite ao jovem apenas a condição de aprendiz, em uma escola destinada a esse fim. O trabalho que Jonas realizava só seria permitido a partir de 18 anos e, ainda assim, sem as condições insalubres a que estavam expostos os cerqueiros.

Seu padrasto era um dos “gatos” da fazenda. A mãe, a mulher abandonada pelo viajante francês. Gato é como são chamados os contratadores de serviços, que arregimentam pessoas e fazem a ponte entre o empregador e os peões. Porém, isso não lhe garantiu nenhum tratamento especial: teve que descontar do salário a bota que usava para trabalhar. Perguntei para o padrasto se isso era justo. Ele, de pronto, me respondeu que não considerava a venda do calçado para o próprio filho errado e justificou: “como vou sustentar a minha mulher?”

O alojamento que Jonas dividia com os outros era feito de algumas toras fincadas no chão, um pouco de palha e uma lona cobrindo tudo. O sol transformava a casa improvisada em forno, encurtando, assim, a hora do almoço. Redes faziam o papel de camas, penduradas aqui e ali para embalar, entre um dia e outro de trabalho, os sonhos das pessoas. O de Jonas, como vários outros rapazes da sua idade, era ser jogador de futebol.

Presença garantida nos times dos mais velhos, participava de jogos e campeonatos quando eles aconteciam. Queria ser profissional, mas apesar de gostar dos times do Rio de Janeiro e de São Paulo, preferia ficar lá mesmo no Pará – quem sabe, algum dia, vestindo as camisas do Paysandu ou do Remo. Por nunca ter ganho na vida um presente de aniversário, não esperava nada naquele ano. Mas disse que pediria uma bola – se pudesse.

Centenas de crianças e jovens no Brasil abandonam a escola e trabalham desde cedo para ajudar as finanças em casa ou mesmo se sustentar. A situação melhorou muito nas últimas décadas, mas um grande número delas ainda estão sujeitas a condições degradantes, como Jonas. Catam latinhas de alumínio nos lixões das grandes cidades, ajudam a família em colheitas de fazendas alheias. Em casos extremos, são obrigados a trabalhar só por comida e impedidos de sair enquanto não terminarem o serviço.

Muitos deles, como Jonas, queriam ser jogadores de futebol. Talvez porque gostem do esporte como nós. Ou talvez porque vejam nele a possibilidade de se verem livres daquela vida, com a bola carregando-os para bem longe, longe o bastante para nunca mais voltar.

Fui até a cidade e comprei uma bola para ele. Podem dizer que eu estava tentando comprar um terreno no céu, expiando a culpa de Adão ou pagando de bom moço para os presentes. Sei que isso não mudaria em nada a vida dele, mas dane-se. O sorriso valeu por todas as críticas que recebi depois disso.

Jogos são usados para distrair, alienar e conduzir a plebe há muito tempo. O pessoal que sangrava no Coliseu, em Roma, que o diga. Mesmo ao longo de nossa história, o futebol foi utilizado com fins políticos. Não faltam livros, teses e documentários para quem quiser se informar sobre a ditadura militar e a Copa de 1970, na qual ganhamos o direito de derreter a Jules Rimet.

Por isso, o futebol é uma idiotice? Não, o futebol é fantástico, é sensacional, é indescritível. Imbecil é quem o usa politicamente. Futebol é uma das melhores coisas já inventadas. A gente pode passar a vida inteira tentando entendê-lo e, ainda assim, se surpreende.

Como na história de um escravo de 14 anos que ainda encontrava tempo para sonhar com futebol.

Espero que o Brasil ganhe a Copa.

Mas espero ainda mais que a bola tenha ajudado a rolar Jonas para fora daquela quase-existência. Pelo menos, nos sonhos.

* Leonardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência Política.

** Publicado originalmente no Blog do Sakamoto.