Sociedade

A fome durante a pandemia: “A última vez que vimos algo assim o Brasil tinha 32 milhões de miseráveis”

por Isabela Holl, especial para a Agência Envolverde – 

O diretor da Ação Cidadania explica como o projeto está auxiliando brasileiros em situação de insegurança alimentar durante a epidemia

Devido a pandemia do coronavírus o número de brasileiros em situação de fome aumentou. A ajuda pode chegar através de organizações como a Ação Cidadania, que distribui alimentos para famílias por todo o país desde 1993. O projeto atua através de uma rede formada por comitês locais, compostos por pessoas que representam a comunidade em que vivem. Dessa forma o projeto tem contato direto com as dificuldades dessas pessoas, que, durante a pandemia, aumentaram.

A Ação Cidadania foi fundada pelo sociólogo Herbert de Souza (Betinho), sua famosa frase “quem tem fome, tem pressa” reflete o que o país enfrenta agora, mais ainda do que antes da epidemia.

O diretor-executivo da Ação da Cidadania, Rodrigo Afonso, afirma que é difícil ter dados precisos sobre o número de pessoas que estão em estado de insegurança alimentar. Entretanto, ele afirma perceber um aumento exponencial, muito maior do que havia antes da pandemia. Rodrigo conta que a última vez que viu algo parecido, o Brasil tinha 32 milhões de pessoas abaixo da linha da pobreza extrema (renda mensal inferior a R$ 145), em 1993. Ele conta que entidades como a Ação Cidadania percebem a piora dos indicadores sociais antes do poder público, pois elas estão em contato direto com quem precisa.

O IBGE não possui uma pesquisa focada no número de pessoas que estão em situação de fome no país. Os últimos dados sobre situação de pobreza (renda mensal inferior a R$ 406)  são de 2017 e indicam 54,8 milhões de brasileiros. Para ter uma noção da dimensão desses números, a população inteira de Portugal é de 10 milhões de habitantes.

Com a pandemia, os trabalhadores informais são uma das categorias mais atingidas, em 2019 havia 38 milhões de brasileiros informais. “Essas famílias normalmente não têm crédito e nem poupança. Então entendemos que boa parte delas foram jogadas, quase que imediatamente, em um potencial risco de insegurança alimentar” explica Rodrigo. Portanto, mesmo que não haja um número exato, podemos ter noção da dimensão de pessoas que estão em risco de fome no Brasil.

A verba da Ação Cidadania é proveniente inteiramente de doações, não há auxílios governamentais. O diretor conta que com a crise do coronavírus houve um aumento de doações vindas de pessoas, mas a maioria das doações é feita por empresas privadas.

Doações podem ser feitas no site da Ação Cidadania.
O projeto utiliza a verba que recebe comprando alimentos em grande escala, dessa forma conseguem um preço mais barato, do que encontramos em mercados, por exemplo.

“Estamos doando de forma contínua, toda semana. Temos entregas para vários estados do Brasil e pretendemos manter esse ritmo no mínimo até o fim de junho, mas queremos estender este processo até o fim do ano se possível. A crise pós Coronavírus será muito mais intensa do que estamos imaginando”, conta Rodrigo.Máscaras de proteção contra a Covid, produtos de higiene e alimentos doados pela Ação Cidadania. Foto: Emerson Muniz.

 A luta contra a fome não recebe destaque no Brasil

O diretor da organização afirma que a fome não é um assunto “popular” no país, outros ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU) recebem um número muito maior de verbas e doações. “Acabar com a fome é o tema do ODS nº 2 da ONU e recebe em  torno de 2% dos recursos destinados para todas as ODS’s juntas” (são 17 ODS no total) .

“Se entidades como a nossa tivessem recebido apoio durante os anos anteriores, muito provavelmente nós e a sociedade que atendemos estaríamos mais preparados para encarar esta crise de insegurança alimentar que vem por aí”.

Ele alerta que o portal brasileiro de editais sociais (Prosas) nunca disponibiliza editais que visem combater a fome. “Faz 3 anos que pesquiso continuamente e nunca há nenhum edital neste tema. Pode ser que agora, temporariamente pela Covid, apareçam alguns, mas o desafio é ter apoio contínuo”.

Abaixo, segue uma parte da entrevista concedida para a Agência Envolverde:

Quais medidas estão sendo tomadas para que a distribuição de alimentos ocorra de forma segura?

Rodrigo: Nosso fornecedor toma as medidas possíveis na composição das cestas. Ele utiliza todas as EPI’s (equipamentos de proteção individual) necessárias e mantém o máximo de higienização durante a montagem das cestas. Essas são ensacadas com um plástico bastante resistente, que isola os produtos durante todo o manuseio da saída da distribuidora até a casa da família. Pedimos a todas as entidades que utilizem itens de proteção na distribuição dos alimentos e que orientem as famílias a higienizar as cestas antes de abrí-las. Sabemos que podem haver riscos, mas estamos fazendo o possível para minimizá-los.

Quais são as maiores dificuldades do projeto nesse momento de pandemia?

Rodrigo: Manter o ritmo das doações. Quando a questão não for mais uma tragédia e começarmos a sair da quarentena, para muitos a crise terá terminado, mas o nosso trabalho estará só começando. De certa forma o isolamento social fez muitas pessoas perceberem a vulnerabilidade social que boa parte da população vive. Houve uma onda de empatia, mas quando as pessoas de classe média e média alta voltarem às suas rotinas de trabalho, o que era uma tragédia passa a ser um drama para as milhões de pessoas, que se somam aos outros milhões em extrema pobreza e o drama, infelizmente, não comove. É neste momento que doações diminuem e que entidades de assistência social como a nossa mais têm dificuldade de atuar. Nessa etapa, as entidades passam a procurar recursos de fundações internacionais e nacionais, mas a grande maioria, para não dizer a totalidade, não apoia projetos de combate à fome.