Água em tempos de crise
Entre ambientalistas há um chavão que aponta a água como o mote das guerras do futuro, onde populações sedentas vagam pela Terra em busca de campos férteis. A perspectiva catastrofista da gestão da água tem adeptos ao redor do mundo, mas não é unanimidade.
Entre ambientalistas há um chavão que aponta a água como o mote das guerras do futuro, onde populações sedentas vagam pela Terra em busca de campos férteis.
A perspectiva catastrofista da gestão da água tem adeptos ao redor do mundo, mas não é unanimidade. A própria Organização das Nações Unidas (ONU) reconhece que o planeta carece de sistemas de gestão e precisa tomar medidas sérias para evitar que a água se torne um fator de desestabilização política e social, porque ambientalmente falando ela já é um drama presente, com níveis de contaminação de mananciais e oceanos acima do que os ecossistemas são capazes de recuperar sem ajuda humana. Sob o ponto de vista da ONU a equação da água se sustenta sobre uma tríade de temas conectados e que demandam políticas públicas globais, nacionais e locais. A água tem vínculos com questões de saúde pública, segurança alimentar e geração de energia, temas estratégicos para toda a humanidade.
As soluções para os três temas “precisam ser perseguidas conjuntamente”, assinalou o secretário-geral Ban Ki-moon, ao apresentar à Assembleia Geral das Nações Unidas o relatório sobre Sustentabilidade Global, no final de janeiro. Às sugestões da ONU juntaram-se, neste mês de março, manifestações de numerosas entidades e governos que participaram do Fórum Mundial da Água, em Marselha, França, onde foi apresentada a 4ª edição do Relatório do Desenvolvimento Mundial da Água, que teve o título Gerenciando a Água sob Incerteza e Risco. Na mesma semana, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) lançou o estudo Perspectivas Ambientais para 2050, que indica para daqui a quatro décadas “um aumento de 55% das exigências globais de água, devido à procura crescente para atividades industriais (+400%), geração termoelétrica (+140%) e consumo doméstico (+130%)”.
A perspectiva é que em 2050, 1,4 bilhão de pessoas ainda não terão acesso a saneamento básico. A população mundial deve aumentar ao menos 30%, para cerca de nove bilhões, mas a demanda por alimentos, de acordo com o relatório da ONU, vai crescer 70%. A agricultura absorverá então 19% mais água do que já consome hoje – e não é pouco: são mais de dois terços do recurso disponível, mesmo havendo ainda 900 milhões de famintos. São cinco Brasis inteiros sem água potável nem saneamento.
Este cenário aponta para a necessidade de tornar o acesso a água um “direito humano”, o que tem esbarrado em oposição feita por grupos dentro da própria ONU, uma vez que a água, além de um direito social é um insumo econômico de primeira grandeza. Nessa perspectiva de escassez, o Brasil está no centro das atenções por deter 12% da água doce do planeta, mas também porque ocupa o quarto lugar entre os países que mais usam recursos hídricos na produção agrícola e de bens industrializados, atrás de China, Índia e Estados Unidos, de acordo com estudo publicado em fevereiro pela Academia Nacional de Ciência norte-americana. Os quatro países consomem o equivalente a 38% de toda a água usada na produção de bens de consumo.
Mudar no Brasil
Enquanto não se materializa a esperada cooperação internacional, setores da iniciativa privada com atuação global buscam aplicar, em suas operações no Brasil, soluções para reduzir o consumo e dar tratamento adequado à água – seja por força da própria dinâmica empresarial de mercado, seja para adequação à Lei de Recursos Hídricos (Lei 9.433/97), que estabeleceu a gestão compartilhada e participativa da água, por meio dos Comitês de Bacia, entre outros instrumentos. A Lei também autorizou a “cobrança pelo uso da água” para estimular a utilização racional e gerar recursos para preservar e recuperar as bacias hidrográficas. O preço é fixado em pacto negociado entre os usuários, poder público e membros da sociedade civil representados nos Comitês.
Por motivos legais, econômicos e/ou convicção filosófica, companhias de variados setores se empenham para ter uma gestão eficiente da água. Ícone da sustentabilidade empresarial, a Natura Cosméticos investe na melhoria contínua de processos. “O que fazemos para reduzir o consumo das fábricas é identificar o desperdício”, conta Denise Alves, diretora de Sustentabilidade. “Monitoramos mensalmente e, a partir desse monitoramento, vamos analisando a possibilidade de utilizar novas tecnologias para reduzir o consumo.” A água utilizada nos sanitários, por exemplo, passa por estações de tratamento para ser reutilizada nos próprios sanitários e na lavagem de ruas e fachadas das unidades industriais. “Contamos também com um sistema de refrigeração do ar que não consome água, ao contrário de outros modelos”, explica Denise, apontando mais uma prática que tem o objetivo de reduzir o consumo.
Empresas de grande porte e que têm a água como um de seus principais insumos estão preocupadas não apenas com a sustentabilidade ambiental de suas operações, mas também com a perenidade de seus negócios, uma vez que a falta da água em qualidade e volume necessários pode levar a um colapso na produção. Na companhia Suzano Papel e Celulose, que atua em um setor de grande demanda de água, é feito um rigoroso controle de desperdícios. Um painel eletrônico registra e exibe a evolução desse consumo relativamente às metas de consumo anual estabelecidas num planejamento estratégico. Como exemplo de resultado desse esforço, a empresa informa que a extração de água do Rio Tietê nas duas unidades de Suzano (SP) caiu 16,3% – de 41,05 metros cúbicos por tonelada (m³/t) produzida em 2008, para 34,36 m³/t em 2010.
O tratamento da água para reutilização nos próprios processos produtivos é uma das práticas mais importantes para economizar o insumo na Unilever – a transnacional que industrializa produtos de higiene, limpeza e alimentícios. Em razão da política global da companhia, o monitoramento é feito há pelo menos 20 anos, com metas de redução do consumo. “Para efeito de comparação, em 2006 o consumo era de 2,158 m³/t produzida, e em 2010 havia caído para 1,887 m³/t”, informa a diretora de Sustentabilidade, Juliana Nunes. No Brasil, 56% da água usada pela Unilever é de origem superficial (basicamente rios), 35% é subterrânea (poços) e 9% de outras fontes (como caminhões-pipa). Juliana explica que não há base de comparação entre as fábricas instaladas aqui e as de outros países, porque as unidades têm características diferentes quanto às tecnologias aplicadas e nas linhas de produção. “Quanto ao uso da água, o que temos é a adoção de boas práticas”, diz a diretora da Unilever, lembrando que a exigente legislação brasileira impulsiona inovações: “No Brasil, nós temos uma série de iniciativas pioneiras que depois são adotadas em outros países”.
Também na geração de energia hidrelétrica se pode economizar água. Operadora de nove usinas e oito Pequenas Centrais Hidrelétricas em São Paulo e Minas Gerais, a AES Tietê desenvolve com a Universidade de Campinas um software que integra dados como índice pluviométrico e nível de vazão dos reservatórios para gerar energia com menor volume de água. O gerente do projeto, Caio Vilas Boas, diz que o novo software “garante maior rendimento dos equipamentos com resultados positivos para o meio ambiente”.
Em razão de seus interesses econômicos e do impacto que representam para o compartilhamento desse bem natural nas regiões onde atuam, empresas de grande porte participam ativamente da gestão nos Comitês de Bacias. O monitoramento da qualidade da água, a definição do valor da cobrança e a fiscalização dos projetos de melhoria aprovados pelo Comitê para aplicação dos recursos arrecadados exigem vigilância constante de toda a comunidade que usufrui dos serviços ambientais inerentes à região beneficiada pela bacia.
Projetos de interesse público regional, como a ampliação de estações de tratamento de esgoto, a limpeza da calha de um rio assoreado, ou a aquisição de estações hidrometeorológicas são alguns dos benefícios que a arrecadação já proporcionou, por exemplo, na Bacia PCJ (dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí), que abrange os Estados de São Paulo e Minas Gerais. A PCJ é pioneira, ao lado da Bacia do Rio Paraíba do Sul (São Paulo e Rio de Janeiro), na cobrança implementada pela Agência Nacional das Águas (ANA) nas bacias interestaduais a partir de 2006. Também na Bacia do São Francisco o mecanismo já foi implantado.
São as agências estaduais que devem regulamentar e aplicar a cobrança nos rios de domínio exclusivo dos Estados, sob a coordenação da ANA. A implementação do processo é desigual, principalmente porque realidades diferentes determinam a formação de preços diferentes para o uso da água em cada região. E não se trata de uma reprodução das desigualdades econômicas regionais. Na bacia de maior densidade econômica do Estado mais rico do país, o mecanismo não funciona plenamente, como revela Denise Alves: “Hoje ainda não existe uma cobrança da Natura pelo uso da água da Bacia do Alto Tietê”.
A percepção da água como um insumo econômico essencial e de alto valor para as empresas pode ser um caminho para a viabilização, também, da água como um direito social, uma vez que os recursos arrecadados na ponta das empresas pode ser a alavanca necessária para que o poder público invista de forma consistente na distribuição de água potável e na coleta e tratamento de esgotos. (Envolverde)
* Sávio de Tarso é colaborador da Envolverde.





