Rubem Braga deve ser fácil ou impossível de ler, parafraseando o que dizia o escritor Bernard Shaw sobre o próprio ofício. Fácil porque a escrita do maior cronista brasileiro, nascido no Espírito Santo em 1913, morto no Rio de Janeiro 77 anos depois, é evidentemente uma delícia, ainda mais ocupada com a universalidade ao rés do chão, segundo anotou, em um texto clássico, o crítico Antonio Candido. O impossível fica por conta do mundo de Braga, que não existe mais para um leitor atual, ou quase não.
Basta verificar o que ele escreve sobre a vida em curso. O protagonista de sua crônica, por exemplo, vai ao mercado beber cachaça, não ao bar. Leva consigo o jornal em papel e observa em torno. A loja vende passarinho, e alguns deles morrem fácil. Os bichos são capturados por um moleque descalço, funcionário do recinto. O balcão expõe o chumbinho que o cliente usa para matar, digamos, os sabiás. E nas prateleiras tem espingarda nova à venda. Sem esquecer das bananas maduras, que ninguém vai deixar de experimentar e levar, uma vez estando lá.
Enquanto isso, as crianças jogam futebol na rua de baixo, porque na de cima a turma vizinha não deixa. Mas as irmãs Teixeira, da rua de baixo, não gostam de jogo. Um dia, a má entre elas fura uma bola nova, que nem era de meia, só porque a turma estilhaçou sua vidraça. Tanta maldade estala um projeto de vingança no Braga menino. Ele vai com a turma da rua de baixo furtar a casa das mulheres, metidas numa viagem. Pula o muro, rouba goiabada, uma faca de cozinha e um martelo. Se praga de menino tem força, as Teixeiras, a partir desse castigo, nunca mais serão felizes.
Esse mundo isento das proibições hoje conhecidas, com ruas livres de carros, abertas à caça, à vingança infantil e ao crime ligeiro, tem alguma coisa de aceitação impossível. Mas a experiência textual que o constrói permanece uma das mais felizes, malgrado as professoras destes dias se virem numa armadilha de correção política ao adotar tal literatura nas escolas. Pode-se dizer que Rubem Braga, por isso, anda esquecido. Algumas edições, como uma recentemente extraída da seleção de 200 textos por ele planejada, 50 Crônicas Escolhidas, da Best Bolso, são vendidas em banca, como o escritor talvez tivesse gostado de ver.
Neste momento de relativa carência, o Instituto Moreira Salles, em intuito canônico-enciclopédico, lança mais um volume da coleção Cadernos de Literatura Brasileira, desta vez dedicado inteiramente ao escritor. Verdade que é bem fino. Os maiores amigos de Rubem Braga, Otto Lara Resende e Fernando Sabino, morreram. Tônia Carrero, a atriz que foi sua musa perturbadora e inacessível, é viva, mas não depõe. O leitor saberá dele então por outras vias, fontes de seu convívio, como a colunista Danuza Leão, o jornalista Cláudio Mello e Souza e o escritor e tradutor Boris Schnaiderman, companheiro de Braga durante a campanha brasileira na Itália na Segunda Guerra Mundial. Os demais serão os intérpretes de seus textos, os jornalistas Humberto Werneck, José Castello e Sérgio Augusto.
Os últimos lançam ideias em torno da grandeza literária do escritor e de seus proverbiais mutismo ou casmurrice. Não faltaria um poema em prosa sobre o “urso de Ipanema”, por Werneck. O jornalista, em parceria com Michel Laub, cola trechos de Braga retirados de crônicas e entrevistas. Os textos editados expressam tudo o que, no literato, parece remeter à biografia. E há mesmo um texto inédito em livro, intitulado Terraço, no qual Rubem Braga narra a aventura de construir seus jardins suspensos em plena cobertura da Rua Barão da Torre, com assessoria de Burle Marx. Consta que o terreno para a empreitada era do condomínio, mas, depois de um acordo, ele prometeu aos moradores do prédio o uso comum do jardim. Quando o zelador perguntou como receberia os visitantes, o escritor foi sucinto: “À bala”.
Dizia Rubem Braga uma porção de frases incríveis, curtas e profundas. Elas são coletadas por este volume, que edita imagens de sua vida e família, os desenhos de sua autoria e 67 fotografias atuais, de Edu Simões, que tentam reproduzir o ambiente por ele presenciado na natal Cachoeiro de Itapemirim e no Rio. “Confesso que escrevo de palpite, como outras pessoas tocam piano de ouvido”, disse Rubem Braga numa ocasião. E também: “Não sou comunista nem cristão, mas apenas um homem distraído e medíocre”. “Fazer política é namorar homem.” “Há mulheres tão lindas e estranhas que só acontecem pela madrugada em um grande aeroporto internacional.” “No fundo do coração, os moços não acreditam na velhice.” “Ultimamente têm passado muitos anos.”
Mas o Braga deste volume 26 dos Cadernos (140 págs., R$ 60), em que pese a descrição cronológica de seus feitos, raramente é o mesmo das crônicas que conhecemos. Isso talvez seja um tanto deliberado por parte dos enciclopedistas, que vivem daqueles momentos marcantes de seus biografados. E Rubem Braga tinha muitos ápices em muitas cidades. Desde jovem vivia de mudança. Ora Espírito Santo, ora Minas Gerais, ora Rio, e até São Paulo, onde se tornou amigo de Oswald de Andrade. Na casa do modernista, à Avenida São João, ouviu o discurso de Getúlio Vargas anunciando o Estado Novo, e dali desapareceu correndo. Nunca foi comunista, por alguma impaciência com a militância, mas se dizia esquerdista. Uma vez brincou que tinha parentes bandeirantes e com isso irritou em definitivo o escritor Mário de Andrade, para quem até as “nuvens” eram paulistas. Em São Paulo, conheceu o escritor Antônio Alcântara Machado, que o convidou a trabalhar no Diário da Noite, no Rio de 1934, onde empreendeu a carreira de cronista, a seu ver conveniente.
E Braga não parou por aí. Serviu como embaixador no Marrocos e no Chile sem precisar ingressar em carreira diplomática, antes por indicação de amigos como o presidente Café Filho. Inicialmente, em 1964, o escritor acreditou nas boas intenções de Castelo Branco. Mas começou a achar exagerado que ele prendesse tanta gente para se manter no poder, e debandou para a oposição à ditadura. Quando ficou muito doente, no fim da vida, não teve meios para se tratar direito, porque a ministra Zélia Cardoso de Mello havia confiscado seu dinheiro, como o de todos os correntistas do Brasil.
O escritor servia à excentricidade não exatamente porque muitos fatos importantes o cercavam, mas porque o coloquialismo impresso nos textos não correspondia a seu complicado desenrolar pessoal. Ele ainda paga pela discrepância de ter sido simples enquanto escrevia e complexo na vida, embora direto nos dois. Foi um tipo que, com câncer de laringe, partiu sozinho para a Vila Alpina, em São Paulo, e encomendou a própria cremação. Quando lhe perguntaram quem morrera, respondeu: “O morto sou eu”.
Daí que a capixaba Danuza Leão, menina quando o conheceu, não suportasse seu olhar. Ela jura que Braga tinha esse método de conquista. Assim teria feito com a bela e elegante militante comunista descendente de croatas Zora Seljan, mãe de seu único filho, Roberto. Olhava sem nada dizer. Se nesse meio tempo alguém falasse com ele, levava um susto. Pôs muitos olhos em Danuza, mas ela, aos 17 ou 18 anos, “nem o encorajava nem o desencorajava”. Um dia, constrangida, a moça teria desaparecido e, ao voltar, recebido uma carta do cronista na qual ele espinafrava seu “medo de viver”. O escritor devia saber do que falava. E o melhor: Danuza também acha que ele tinha razão.
As imperfeições de Braga surgem tímidas nos depoimentos. Boris Schnaiderman fala de uma delas. Em seu texto neste Cadernos, começa por dizer que muito apreciou o trabalho do escritor como correspondente de guerra entre 1944 e 1945. Suas crônicas para o Diário Carioca, depois reunidas no livro Com a FEB na Itália, captaram o lirismo nos momentos inesperados, como quando descreveu a menina Silvana, de dez anos, o corpo dilacerado pela explosão de uma granada. Mas, segundo o professor, algo não se encaixava no conjunto das descrições. O problema era o correspondente ter apontado, nos soldados, uma convicção antifascista que seria só dele. Schnaiderman diz que Getúlio Vargas guinou dos integralistas aos aliados apenas por entender para onde sopravam os ventos. E a população que o apoiava, também composta de soldados, seguira sem entender, no íntimo, a mudança de rumos. O Exército não era contra o nazismo, o Exército apenas lutava.
O depoimento que surpreende é o do jornalista Cláudio de Mello e Souza. Ele começa por chamar Rubem Braga de “primata renascentista”, um sábio a lhe dar tapas metafóricos. Mello e Souza foi apresentado ao escritor por Fernando Sabino e Otto Lara Resende. E começou a frequentá-lo, como diz, “sem exageros”, sempre a bordo de uma mulher bonita, para que o humor de Braga não emperrasse. Um dia, quis visitá-lo com Tônia Carrero, que o jornalista então namorava. A resposta veio por telefone: “Que venha você sem ela, ou ela sem você. Os dois juntos, jamais”.
Certo dia, depois disso, pediu albergue ao escritor, que lhe teria dito concisamente: “Pode vir”. Daí em diante, na cobertura de Ipanema, ofereceu-lhe jantar, cama e uísque, mas não conversa. O jornalista acordou inquieto e decidiu sair do apartamento. Não explicou o porquê ao anfitrião e pensou fazer isso em um telefonema. Mas não teve tempo. Quando decidiu ligar, soube que o amigo morrera um dia antes. Fora cremado, sem velório nem enterro. Mello e Souza conformou-se. “E então Rubem, livre das amofinações da vida, quase tanto quanto dos angustiantes mistérios da morte, se retirou do convívio de todos sem remorso nem cerimônia, um tanto machadianamente e bem ao seu estilo: de mal com os homens e, talvez, de bem consigo mesmo. Ou de mal com os dois, o que acho bem provável.” A história é tocante, mas não diz respeito à sua literatura. Se Braga permanece conosco, isso não ocorreu por ter sido triste, urso, primata, tosco ou tímido. Ficou porque seus textos acertaram no palpite.
* Rosane Pavam é jornalista, editora de Cultura de CartaCapital . Autora do livro O Sonho Intacto – Nas Palavras de Ugo Giorgetti e do blog Contos Invisíveis.
** Publicado originalmente na coluna da autora, no site da revista Carta Capital.