Ambiente

As redes de tráfico que estão acelerando a extinção de espécies na Amazônia

Por ,  Mongabay –

  • Novo relatório de 140 páginas lança luz sobre o tráfico ilegal de animais silvestres na Amazônia. O estudo revela que milhões de aves, tartarugas, mamíferos e peixes tropicais estão sendo retirados da natureza e comercializados internamente ou exportados para Estados Unidos, Europa, China, Oriente Médio e outros lugares. Muitos estão em perigo de extinção.
  • O comércio internacional ilícito é facilitado por leis e penalidades fracas, manutenção inadequada de registros governamentais e aplicação ineficiente da lei, assim como corrupção generalizada, suborno, fraude, falsificação, lavagem de dinheiro e contrabando.
  • Embora alguns animais sejam apreendidos e alguns contrabandistas de baixo escalão sejam capturados, os líderes desta operação criminosa global raramente são levados à justiça.
  • O relatório indica que o tráfico não só prejudica a vida silvestre como também dizima ecossistemas e coloca em risco a saúde pública. Os pesquisadores apontam que a covid-19 provavelmente foi transmitida aos seres humanos por animais traficados e que medidas mais duras contra o comércio ilegal da fauna silvestre da Amazônia brasileira poderiam evitar a próxima pandemia.

A Amazônia brasileira perde todo ano milhões de animais silvestres para o tráfico ilegal, de acordo com um novo relatório da organização britânica Traffic.

Canários-da-terra e outros pássaros, incluindo araras e papagaios raros, são capturados, traficados e vendidos como animais de estimação. Alguns são leiloados para se tornar futuros competidores em concursos de aves.

Peixes ornamentais destinados a aquários domésticos também são retirados da Amazônia, entre eles o tetra-azul e o tetra-cardeal. O pirarucu, um dos maiores peixes de água doce do mundo, é capturado ilegalmente na natureza, misturado em meio a espécimes criados em cativeiro e enviado para os Estados Unidos em grande quantidade.

Esse e outros peixes são servidos na mesa de jantar, assim como tartarugas de água doce e seus ovos, enquanto antas, porcos-do-mato e outros mamíferos são vendidos no Brasil como carne de caça. Já dentes, cabeças e peles de onças-pintadas são enviados à China, para uso na medicina tradicional ou como artigo de decoração.

“A captura abrangente e descontrolada de animais e plantas silvestres para o tráfico está trazendo graves consequências à biodiversidade brasileira, à economia nacional, ao Estado de Direito e à boa governança”, diz o relatório.

Partes de onça-pintada, como pele, patas e dentes, são vendidos na Ásia para uso na medicina tradicional e como adorno. Foto: Diego Pérez / WWF.

Falta de dados esconde o tráfico

O estudo de 140 páginas foi conduzido pela consultora em biodiversidade Sandra Charity junto com Juliana Ferreira, diretora executiva da Freeland Brasil. Seu foco foram espécies da Floresta Amazônica, com destaque para o comércio de aves.

Uma das descobertas da pesquisa foi a existência de um segmento cada vez maior do comércio ilegal que “lava” pássaros vítimas de caça,  valendo-se de uma rede legal de criação de aves em cativeiro.

As autoras também detectaram que poucas agências governamentais mantiveram registros ou reportaram dados sólidos que quantificassem o verdadeiro escopo do problema. Em muitos casos, os registros nem mesmo identificavam as espécies ou o número específico de animais apreendidos pelas autoridades, enquanto os dados provenientes da Amazônia eram “notoriamente escassos”.

“Apreensões significativas são feitas diariamente por ações policiais no estado do Amazonas, mas não tivemos acesso aos dados”, diz Juliana Ferreira. “Pelo que vimos, [o comércio ilegal] é ainda maior do que imaginávamos.”

São tendências difíceis de acompanhar, uma vez que os dados de apreensão representam apenas uma fração dos animais retirados ilegalmente da natureza. A partir das informações existentes, porém, pode-se notar um claro aumento no contrabando de algumas espécies: as apreensões de onças-pintadas, por exemplo, aumentaram em 200% de 2012 a 2018.

O relatório aponta que a falta de dados abrangentes tende a minimizar a severidade do tráfico de animais silvestres no Brasil – minando os esforços de fiscalização, as medidas legais e o investimento necessário para combatê-lo.

O estudo adverte, ainda, que o comércio ilegal está tendo sérias consequências não apenas para os animais apreendidos, como também para espécies, ecossistemas e povos inteiros — na Amazônia e em todo o mundo. A atual epidemia do covid-19, por exemplo, causada por um coronavírus que migrou da natureza para os humanos, lembrou ao mundo que o tráfico de animais silvestres não é apenas uma questão de conservação da biodiversidade, argumenta Ferreira. É tanto uma questão de saúde pública quanto uma questão de biossegurança.

 

Impacto em cascata sobre os ecossistemas

O atual comércio ajudou a acelerar o desaparecimento de 1.173 espécies que enfrentam a extinção no Brasil. Muitas vezes, quem são capturados são os indivíduos maiores, mais fortes e mais bonitos — machos de aves, por exemplo —, impactando toda a população daquela espécie. Os poucos sobreviventes em um grupo, por sua vez, podem se tornar consanguíneos, enfraquecendo o patrimônio genético.

Segundo as autoras, retirar indivíduos de populações selvagens de forma sistemática pode criar um efeito dominó, gerando impactos em cascata e desmantelando os sistemas biológicos e físicos que sustentam toda a vida na Terra.

Sem aves que atuam como dispersoras de sementes, as árvores e plantas de que muitos animais dependem para se alimentar desaparecem. Vale lembrar que as florestas tropicais atuam como enormes armazenadoras de carbono, ajudando a minimizar os efeitos das mudanças climáticas, além de amortecer enchentes e fornecer água potável para milhões de pessoas. Perder milhões de animais todos os anos para o tráfico poderia não apenas levar  à existência de florestas vazias, mas eventualmente causar o colapso de ecossistemas inteiros.

O tráfico como crime organizado global

O comércio ilegal de animais selvagens também está ganhando cada vez mais atenção em função das redes criminosas transnacionais que abrangem quase todos os continentes, gerando lucros gigantescos e cultivando a corrupção em grande escala.

O Fundo Mundial para o Ambiente (GEF, na sigla em inglês) descreve o tráfico de animais silvestres como “um dos negócios ilegais mais lucrativos do mundo”. É classificado como a quarta maior fonte mundial de ganhos criminosos, gerando até 23 bilhões de dólares por ano. Com tanto dinheiro circulando de modo ilícito, o tráfico tornou-se uma questão de segurança nacional em todo o mundo.

Mesmo que as autoridades ambientais possam apreender animais comercializados ilegalmente e prender alguns contrabandistas, o estudo indica que a aplicação da lei não está visando os líderes reais que dominam o comércio ou suas cadeias de abastecimento. Como resultado, a indústria do crime ambiental prospera, produzindo corrupção generalizada, suborno, fraude, falsificação, lavagem de dinheiro e contrabando.

Infelizmente, “a legislação existente não considera o tráfico de animais selvagens um ‘crime grave’”, diz o relatório, alertando que há diversas brechas e inconsistências nas leis. Como o comércio ilícito é um negócio tão lucrativo, penas leves significam poucos obstáculos. Uma “detenção” de 6 a 12 meses é comum nesse segmento, o que é apenas uma restrição à liberdade, e não tempo de prisão propriamente dita. Muitas vezes, essa pena é negociada para incluir parte do cumprimento em serviço comunitário.

Além disso, o relatório documentou extensas evidências de fraude cometida por criadores privados e comerciais no Brasil que falsificaram licenças, etiquetaram indevidamente declarações de espécies e adulteraram anilhas de identificação emitidas pelo governo para vender pássaros adquiridos ilegalmente junto às espécies regulamentadas. Este mercado específico é, em grande parte, doméstico – o que alimenta uma cultura bastante consolidada no Brasil, que é a de manter pássaros (especialmente canários) como animais de estimação. O Ibama estimou que, só em 2015, cerca de 3 milhões de aves passeriformes foram registradas por meio de práticas fraudulentas governo – 75% do total.

Tartaruga-de-cabeça-grande-do-Amazonas (Peltocephalus dumeriliana), capturada no Rio Negro. Foto: Staffan Widstrand / WWF

Controlando o tráfico na Amazônia

Embora o objetivo do novo relatório não fosse fazer uma avaliação extensa do comércio internacional, as autoras detectaram que compradores estrangeiros estão motivando grande parte dele. “Parece que alguns países asiáticos estão adquirindo mais espécies no Brasil, tais como pepino-do-mar, cavalos-marinhos, peixes ornamentais, onças e tubarões”, diz Ferreira, acrescentando que os Estados Unidos são os principais consumidores de peixes ornamentais e de couro feito de pele de pirarucu. Aves, anfíbios e répteis normalmente são vendidos a colecionadores europeus, e o Oriente Médio é um mercado para aves de rapina da Amazônia.

O comércio digital – a internet, as mídias sociais e os grupos de mensagens – tornaram-se “escritórios de vendas” chave para os animais selvagens e produtos feitos a partir deles. A própria “mercadoria” é movida de todas as maneiras imagináveis: por meio de carros, ônibus, barcos, aviões e serviços de entrega durante a noite. “Mulas” humanas foram detidas com pássaros ou ovos colados a  seus corpos, ou escondidos dentro de roupas. Uma fronteira permeável de cerca de 13 mil quilômetros entre a Amazônia brasileira e sete países cria um fluxo fácil. As fronteiras peruanas e colombianas, no noroeste da Amazônia, formam um “eixo particularmente relevante” para o tráfico, observou o relatório.

Segundo Sandra Charity, autora principal do estudo, o combate ao comércio ilegal exige que ele seja reconhecido e tratado como um crime grave. Também são necessários dados mais completos que viabilizem um planejamento estratégico e reforcem a aplicação da lei,. Leis nacionais mais duras que mirem nos traficantes profissionais também permitiriam a aplicação das medidas previstas pela Convenção das Nações Unidas sobre o Crime Organizado..

“Sem um mercado, não há comércio. Portanto, educar os consumidores é fundamental”, conclui Juliana Ferreira. “Em última análise, é uma questão de escolher por que estamos comprando aquele animal, ou produto da vida silvestre, e se vale a pena. Culturas são dinâmicas e precisam evoluir. Precisamos começar a mudar a maneira como vemos a vida silvestre como mercadoria , e também entender que amar um animal pode equivaler a aprisioná-lo”.

Imagem do destaque: Onça-pintada (Panthera onca). © naturepl.com / Edwin Giesbers / WWF.

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