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Atenção universal arquetípica, mas exasperante

Sala de espera no setor de pediatria do hospital Albert Schweitzer, no Rio de Janeiro. Foto: Agência Brasil Marcello Casal Jr/EBr

Rio de Janeiro, Brasil, 7/11/2011 – A notícia de que o governo da África do Sul se inspira no Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro para criar sua própria rede de assistência médica universal pode despertar ceticismo neste país. A socióloga Walkiria Dutra de Oliveira compartilha dessa convicção. Contudo, a surpresa a esperava no posto de saúde de um bairro de classe média de São Paulo.

Há oito anos com diabetes e forçada por dificuldades financeiras, Walkiria decidiu “buscar insulina gratuita” na rede pública de saúde. A atenção “rápida e eficaz” que recebeu jogou por terra a imagem que tinha do SUS, concebido durante a democratização da década de 1980 para estabelecer a assistência médica como um direito universal. Além da insulina, ela também obteve remédios gratuitos para hipotiroidismo, contou à IPS.

As notícias sobre pacientes que morrem por falta de camas em hospitais, esperas de meses por uma cirurgia e graves erros médicos, além de escândalos de corrupção, generalizaram a opinião de que o sistema é uma chaga nacional. “A execução tem distorções, mas a ideia é excelente e válida”, resumiu à IPS o médico especializado em laboratórios clínicos Nivaldo Gomes, que desde a década de 1970 trabalha em postos e hospitais públicos.

O governo está em uma batalha parlamentar para criar novas fontes de financiamento do SUS, mas, na opinião de Nivaldo, “a insuficiência é de gestão, não de dinheiro”. Segundo o médico, “falta vontade política” para praticar a fundo os princípios do SUS, com o que concorda sua colega Dilene do Nascimento, médica e pesquisadora da história das enfermidades na Fundação Oswaldo Cruz, importante centro de estudos de saúde pública e desenvolvimento de remédios.

Apesar das tragédias diárias por mau atendimento, hospitais repletos e manifestações de insatisfação, o SUS melhorou a situação sanitária do país, afirmou Dilene. O sistema criou a possibilidade de “atender a todos igualmente”, ordenando um setor antes caótico e dependente de iniciativas políticas sem articulação, acrescentou.

Para Nivaldo, o objetivo é coordenar três níveis da administração pública (municipal, estadual e nacional), que “antes não dialogavam no setor da saúde”, e hierarquizar a consulta com uma ampla rede de cuidados primários em bairros, municípios e periferias das grandes cidades, responsáveis por atender casos menores, encaminhando os mais complexos para outras instâncias. Este ordenamento é acompanhado de conceitos democratizantes, como “a saúde é direito de todos e dever do Estado”, que foi incorporado à Constituição de 1988, destacou Dilene.

Entretanto, a corrupção, agravada por uma fiscalização insuficiente, contribui para a má execução do SUS, que, ainda assim, é um sistema “universal, hierarquizado, descentralizado, com controle social, que pode ser aplicado com êxito em qualquer país”, disse a médica.

De fato, as autoridades da África do Sul querem “emprestar” do SUS sua atenção primária de promoção da saúde. “É excelente, muito mais avançada, equitativa e voltada à prevenção do que a nossa, por isso vamos aplicá-la”, disse à IPS o ministro da Saúde sul-africano, Pakishe Aaron Motsoaledi. Além disso, “também queremos implantar a rede de bancos de leite humano” para impulsionar a amamentação materna e a doação deste alimento a recém-nascidos de todo o país.

“Queremos erradicar a malária, não apenas tratá-la, e, quanto ao HIV (vírus causador da aids), devemos universalizar os tratamentos como fez o Brasil”, acrescentou o ministro, entrevistado por ocasião da Conferência Mundial sobre Determinantes Sociais da Saúde, que aconteceu em outubro no Rio de Janeiro. Os governos dos dois países vão formalizar a cooperação sanitária em um memorando de entendimento que estão preparando e será assinado em fevereiro de 2012.

No Brasil, a falta de “educação sanitária” da população determina que pacientes com simples sintomas de gripe ou pequenos ferimentos procurem grandes hospitais nos quais só deveriam chegar os casos graves enviados pela rede básica e pelos serviços intermediários, como clínicas e pequenos sanatórios.

O SUS foi construído em amplos debates encabeçados a partir de 1970 por especialistas em saúde pública e coletiva, despertando grande entusiasmo na comunidade médica, recordou Nivaldo. Na época, o financiamento da saúde pública por meio da assistência social se esgotava, junto com conceitos que privilegiavam o emprego formal, em um país de grande proporção de trabalho informal.

No entanto, as classes média e alta optaram por planos de saúde privados, que asseguram serviços de profissionais e instituições vinculadas por convênios, contou Dilene. Este sistema é caro e apto para famílias de alta renda, cujo peso político não contribui para melhorar o sistema público quando são necessários cirurgias ou procedimentos complexos e mais caros, acrescentou.

Isto ocorreu com a epidemia de síndrome da deficiência imunológica adquirida (aids) em meados dos anos 1980, embora o Brasil tenha adotado a distribuição universal de medicamentos porque interessava à sua indústria farmacêutica, produtora de antirretrovirais, lembrou Dilene. De todo modo, o tratamento da aids foi um exemplo das práticas do SUS que deveria se estender a outras doenças.

Um funcionamento mais eficaz exige ampliar a rede primária, que é admirada pelo ministro Motsoaledi, com mais postos de saúde e médicos de família. O SUS funciona bem em cidades pequenas e médias onde as prefeituras garantem boa gestão, comprovou a médica nos anos em que trabalhou em São José dos Campos, no Estado de São Paulo, quando era uma cidade média.

As tragédias por falta de hospitais no Rio de Janeiro – que conta com uma excelente rede hospitalar – são explicadas pelo fluxo de pacientes de cidades vizinhas, que formam uma região metropolitana de 12 milhões de habitantes, disse Nivaldo. Há 30 anos, previa-se o colapso da assistência hospitalar da cidade se não fossem construídos hospitais menores em cidades próximas, recordou o médico. A pressão demográfica levaria à insuficiência da capital do Estado, tal como ocorreu. Uma boa aplicação dos princípios do SUS poria fim a esse drama, concluiu Nivaldo.

“A África do Sul gasta mais dinheiro do que muitos países: 8,5% do produto interno bruto vai para a saúde”, quando a recomendação internacional é “uma proporção de 5%”, disse à IPS o ministro Motsoaledi. Porém, “se observarmos a mortalidade materna e infantil, a expectativa de vida e a prevalência do HIV, compreendemos que estamos andando para trás”, acrescentou.

Enquanto em toda a África subsaariana a mortalidade materna diminuiu um quarto em relação a 1990, na África do Sul – a economia mais avançada do continente – cresceu quatro vezes. Em 1990, eram registradas 150 mortes maternas para cada cem mil nascidos vivos. Esse índice saltou para 625 mortos por cem mil no informe sul-africano de avaliação dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio de 2010.

Precisamente, “um determinante social da saúde é como se distribui o PIB. Desses 8,5% gastos, 5% vão para 16% da população e o restante 3,5% são divididos entre 84% dos habitantes. O que aqui se chama seguro de saúde cobre apenas 16% da população sul-africana”, disse Motsoaledi. A iniciativa de criar um seguro nacional de saúde é agora um documento aprovado pelo gabinete e colocado para o debate público, que estabelece um cronograma de 14 anos. Nos cinco primeiros, “começaremos a melhorar o sistema de assistência”.

Novos impostos ou retenções dos trabalhadores são alguns instrumentos de financiamento em estudo, dos quais Motsoaledi não quis adiantar nada. Também são examinados os sistemas aplicados no Brasil, Tailândia, Grã-Bretanha e Holanda. “A África do Sul é uma das sociedades mais desiguais do mundo. O que tentamos é levar mais igualdade à saúde”, afirmou o ministro. Envolverde/IPS

* Com a colaboração de Fabíola Ortiz (Rio de Janeiro).