Internacional

Chile aprova projeto de lei sobre aborto

Um grupo de mulheres se prepara para entrar na Câmara de Deputados para presenciar a sessão na qual foi aprovado o projeto de lei que despenaliza o aborto em três situações, no dia 17 deste mês, na cidade de Valparaíso, sede do parlamento chileno, a 45 quilômetros de Santiago. Foto: Fátima Castro/IPS
Um grupo de mulheres se prepara para entrar na Câmara de Deputados para presenciar a sessão na qual foi aprovado o projeto de lei que despenaliza o aborto em três situações, no dia 17 deste mês, na cidade de Valparaíso, sede do parlamento chileno, a 45 quilômetros de Santiago. Foto: Fátima Castro/IPS

Por Marianela Jarroud, da IPS – 

Santiago, Chile, 23/3/2016 – Após 26 anos de democracia e 14 longos meses de intenso debate com tons ideológicos, o parlamento do Chile aprovou, no dia 17 deste mês, em primeira votação, o projeto de lei que despenaliza o aborto em três situações: risco de vida para a mãe, inviabilidade fetal e violação. Mas persistem ameaças ao projeto, que pode ser cerceado no Senado, ou mesmo invalidado, total ou parcialmente, pelo Tribunal Constitucional.

“Este é um passo histórico, que busca vencer os que por tantos anos tentaram impor uma única posição a partir do conservadorismo, de suas opções pessoais”, destacou à IPS a deputada comunista Karol Cariola. “Esse passo contribui para despenalizar as mulheres, que hoje são tratadas como criminosas quando expostas a situações como violação, a tortura de ter no ventre com um feto que sabem que nascerá e morrerá, ou como o fato de colocar em risco sua vida quando uma gravidez tem complicação”, acrescentou.

O projeto é uma das iniciativas emblemáticas do segundo governo da socialista Michelle Bachelet, no poder desde 2014 e que já governou o país entre 2006 e 2010. O projeto de lei recebeu 66 votos a favor e 44 contra. “Esse projeto não impõe nada a ninguém, o que faz é permitir que cada mulher, nessas circunstâncias, possam tomar suas próprias decisões, em função de seus valores, princípios, convicções e sua realidade pessoal e familiar, e que essas decisões tenham o acompanhamento correspondente”, afirmou Bachelet depois da votação.

“O que esse projeto pretende é que a sociedade apoie as decisões autônomas das mulheres em lugar de penalizá-las”, pontuou Bachelet, que foi a primeira diretora executiva da ONU Mulheres, entre 2010 e 2013.Na votação de cada uma das circunstâncias também houve apoio majoritário, embora no caso de violação o resultado tenha sido de 59 apoios e 47 oposições, devido à rejeição de parte dos deputados da governante aliança Nova Maioria, especialmente da Democracia Cristã.

A interrupção da gravidez por violação está limitada às 12 primeiras semanas de gestação, salvo para quem tem menos de 14 anos, quando nesse caso somam-se mais duas semanas. “Estamos muito contentes com a aprovação do projeto. É um avanço histórico”, ressaltou à IPS a socióloga Claudia Dides, diretora executiva da organização não governamental Miles, dedicada aos direitos reprodutivos. “É a primeira vez desde o retorno da democracia no Chile (1990) que se vota na Câmara de Deputados um projeto de lei sobre aborto”, acrescentou.

O aborto terapêutico, nos três casos aprovados, foi legal no Chile por mais de meio século, até que, em 1989, a ditadura militar (1973-1990) promulgou uma lei penalizando a interrupção voluntária da gravidez em qualquer circunstância. O regime do general Augusto Pinochet tomou essa medida quando já estava de saída, porque havia perdido o plebiscito para continuar no poder, realizado um ano antes.

 Em um ato solene, a presidente do Chile, Michelle Bachelet, apresentou em janeiro de 2015 o projeto de lei que despenaliza o aborto em três casos, uma das grandes promessas de seu governo. Foto: Presidência dos Chile

Em um ato solene, a presidente do Chile, Michelle Bachelet, apresentou em janeiro de 2015 o projeto de lei que despenaliza o aborto em três casos, uma das grandes promessas de seu governo. Foto: Presidência dos Chile

A lei levou o Chile a ser um dos seis países do mundo que proíbe e criminaliza qualquer interrupção da gravidez, significativamente com outros três da América Latina: El Salvador, Nicarágua e República Dominicana, aos quais se somam Malta e Vaticano. Embora se desconheça os números reais, especialistas médicos estimaram à IPS que são praticados, pelo menos, 335 mil abortos ilegais a cada ano no Chile, país de 17,5 milhões de habitantes, onde mais da metade são mulheres que se expõem a penas de até cinco anos de prisão caso se submetam ao aborto.

Pesquisa realizada em fevereiro mostra que 74% dos chilenos aprovam a despenalização da interrupção da gravidez. “Hoje em dia há uma disposição dos chilenos e das chilenas de que podemos tomar decisões por nós mesmos, e que não seja o Estado a nos impor uma única posição. É isso que acontece no Chile, ao contrário da grande maioria dos demais países do mundo”, afirmou Cariola.

Para Luis Sáez, um transeunte que falou à IPS enquanto se dirigia ao seu trabalho, no centro de Santiago, a aprovação da lei constitui “um fator de esperança e um avanço para a autonomia e a liberdade das mulheres”. No entanto, este psicólogo de 42 anos considera que a iniciativa é “insuficiente”, porque ainda estabelece limites “sobre o que a mulher deve ou não fazer com seu corpo”.

O debate em torno do projeto foi criticado por muitos setores porque houve atores políticos que o transformaram em uma nova vulneração dos direitos das mulheres, com graves ofensas contra elas e falta de argumentos.

“Só uma maquinação intelectual é capaz de dizer que a mulher tem direito de decidir sobre seu corpo”, afirmou o deputado José Antonio Kast, da direitista União Democrata Independente, durante sua intervenção na Câmara. Seu correligionário Gustavo Hasbún disse que o projeto é “a antessala da legalização da eugenia”, e acrescentou que aprová-lo significava “acabar com as crianças com deficiência”.

Por sua vez, René Manuel García, da também opositora e direitista Renovação Nacional, declarou que “o governo militar, ou ditadura, como queiram chamá-lo, matava pessoas adultas. Vocês as matam antes de nascer. Qual é a diferença entre esses dois crimes?”.

Dides assegurou que as palavras “célebres” de alguns deputados “produzem certo temor por nossa democracia, porque voltam a aparecer todos os temas que o Chile não foi capaz de sanar”, após os 16 anos de regime militar. “Me preocupam as ofensas à mulher, porque não podem nos tirar nem cercear o direito à autonomia. Só queremos que mulheres e homens tenham direito de escolher, sobretudo no âmbito reprodutivo”, acrescentou.

Carriola concorda com a ideia de que ainda restam no Chile “ranços da ditadura onde se impõe determinada posição”. Entretanto, ressaltou que, com a aprovação do projeto de lei “damos um passo para fortalecer ainda mais nossa democracia”.

Porém, Sáez foi além, e criticou a intervenção dos deputados homens que, nesse assunto, “não deveriam opinar. É decisão das mulheres decidir sobre seu corpo e o que nos compete é acompanhá-las. Não é legítima a possibilidade de um julgamento a respeito desta decisão”, enfatizou. O “marco ideológico patriarcal” que impera no Chile, dá conta de que “os corpos das mulheres são considerados territórios públicos, enquanto com o corpo dos homens ninguém se mete”,acrescentou.

O projeto de lei agora será analisado pelo Senado, onde o governo também tem maioria, embora mais ligada a setores conservadores da aliança que o apoia. Se rejeitada, a iniciativa será apreciada por uma Comissão Mista de deputados e senadores, em sua última instância legislativa.

Dides afirmou que insistirão para que o governo coloque o projeto em regime de urgência no Senado, “porque não podemos continuar esperando por mais um ano”. E acrescentou que no Senado esperam repor uma indicação sobre a confidencialidade, rejeitada pelos deputados, e eliminar outra, que foi aprovada, que proíbe que centros de saúde divulguem o procedimento. “O debate foi profundo e se deu em nível legislativo e também cultural na sociedade chilena. Agora é preciso legislar”, ressaltou.

O governo já anunciou que avaliará se aplica urgência ao projeto. “Temos uma clara convicção de que esse projeto de lei não pode ser eternizado”, declarou a ministra do Serviço Nacional da Mulher, Claudia Pascual. Envolverde/IPS