ODS2

Combate à fome enfrenta uma encruzilhada no mundo

por para o Diálogo Chino – 

FAO elege novo diretor para conduzir sistemas alimentares em direção a saúde e sustentabilidade

Se quisermos proteger a nossa saúde e o meio ambiente, é necessário agir rápido, pois o tempo para transformar a forma como produzimos e consumimos alimentos está se esgotando. Essa é a opinião de Tim Benton, pesquisador visitante na Chatham House, um importante instituto de pesquisa de temas políticos.

Faltando 12 anos para que as medidas necessárias ainda consigam evitar as catastróficas mudanças climáticas, o organismo da ONU responsável pelos setores de alimentos e agricultura – que geram até um terço das emissões de efeito estufa no mundo – se reunirá em Roma e nomeará um novo diretor-geral para direcionar as políticas globais do setor alimentar mundial.

O vice-ministro da Agricultura e dos Assuntos Agrários da China, Qu Dongyu, foi eleito  com 108 votos,  como novo diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO).  Ele ocupará o cargo  de 1º de agosto de 2019 a 31 de julho de 2023. O governo brasileiro apoiou oficialmente a eleição de Dongyu para a FAO e a ministra Tereza Cristina (Agricultura, Pecuária e Abastecimento) participou da votação, em Roma.

“Os sistemas alimentares do mundo inteiro estão num impasse”, afirma Benton, acrescentando que, se não houver mudanças drásticas no atual sistema alimentar, baseado no cultivo em massa de grãos para produzir alimentos baratos e altamente calóricos, continuaremos destruindo o planeta e as pessoas.

1945 – o ano em que a FAO foi estabelecida

como parte da arquitetura internacional do pós-guerra

A Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) hoje agrega 192 países, mas foi estabelecida por 42 estados-membros na cidade de Quebec, em 1945. Segundo a sua constituição, a organização pretende livrar a humanidade da fome.

Hoje, o trabalho desenvolvido pela organização é baseado em outros alicerces: mitigação dos impactos climáticos causados pela produção de alimentos e adaptação dos sistemas alimentares a condições climáticas imprevisíveis.

Candidatos dão o tom

A FAO definirá o tom do debate global sobre alimentos. Para o atual diretor, José Graziano da Silva, a nutrição e a sustentabilidade são temas centrais à visão da organização. É crucial que o seu sucessor também siga por esse caminho, disse Benton.

Duas pessoas lideravam a corrida para a chefia da FAO, com mandato inicial de 4 anos: o especialista em batatas e ex-vice-ministro de agricultura da China, Qu Dongyu, e Catherine Geslain-Lanéelle, da França.

“Todos estão envolvidos na guerra comercial

e ela tem consequências econômicas

perigosas no médio prazo”

Geslain é também especialista em segurança alimentar e ex-funcionária pública. É possível que ela rompa com as políticas da UE que proíbem culturas geneticamente modificadas e agroquímicos nocivos.

Davit Kirvalidze, ex-ministro da agricultura da Geórgia, é o terceiro e último candidato.

Cada país-membro das Nações Unidas tem direito a um voto para eleger o novo diretor.

Tanto o protecionismo econômico como a guerra comercial entre os Estados Unidos e a China lançam um cenário desafiador para as organizações multilaterais que se dedicam à segurança alimentar, como a FAO, afirma Roberto Rodrigues, coordenador do Centro de Estudos do Agronegócio da Fundação Getúlio Vargas.

“Todos estão envolvidos na guerra comercial e ela tem consequências econômicas perigosas no médio prazo”, disse ele.

Política e políticas

A carreira política de Qu começou de fato em 2011, quando ele se tornou vice-presidente da Região Autônoma de Ningxia Hui, no centro-norte da China.

Ele tem doutorado em genética e reprodução pela Universidade de Wageningen, na Holanda, e experiência na gestão de um programa de alívio da pobreza em Guizhou, a província mais carente da China, solucionando a questão do veneno das batatas.

Ele supostamente tem o apoio de inúmeros países latino-americanos, mais notavelmente do Brasil, que tem sido a principal fonte de produtos agrícolas para a China devido às tensões comerciais com os EUA.

Rodrigues disse que isso pode ser fruto da cooperação mais estreita entre o Brasil e a China no comércio nos últimos anos, e também porque os países têm economias “complementares”.

Segundo Benton, a China conquistou apoio para a candidatura de Qu nos países em desenvolvimento devido aos seus amplos investimentos sob a Iniciativa do Cinturão e Rota.

Benton disse que Qu tem o pé mais atrás com a visão americana de uma agricultura em grande escala e na inovação biotecnológica para aumentar a produtividade no campo. Geslaine, por outro lado, parece apoiar mais essa abordagem.

Yolanda Trápaga, economista agrícola da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM), disse que o modelo de agricultura que é defendido pelos Estados Unidos é falho, tanto do ponto de vista ambiental como econômico.

A natureza tem limites e a nossa busca por alimentos mais baratos está destruindo os solos e a biodiversidade dos nossos oceanos, onde o problema é ainda mais grave do que em terra firme, disse ela.

Apesar disso, a agricultura, que depende da saúde do solo e do ciclo de água, é tratada como qualquer outro ramo da economia.

“A produção industrial é uma grande roubada em termos de energia, em como a natureza funciona”, disse Trápaga. Ela destacou que se gasta mais energia nos insumos necessários para a produção de grãos – como adubo e máquinas movidas a gasolina – do que a produzida pelos grãos.

Tampouco pode o capital internacional assumir os riscos do investimento na agricultura, que são altos, porque as culturas e os lucros dependem de padrões imprevisíveis de clima, disse ela.

“É como investir em uma fábrica de colchões destelhada: quando chove, você perde tudo”.

70% dos alimentos do mundo são produzidos

por produtores familiares

A agricultura familiar, que produz aproximadamente 70% dos alimentos consumidos no mundo, geralmente assume esse ônus. Esses empreendimentos, bem como as empresas de pesca, dependem de subsídios e cotas para sobreviver, contou Trápaga.

Rodrigues, ministro da agricultura entre 2003 e 2006, reconheceu os altos riscos da atividade agrícola e criticou os subsídios que, segundo ele, distorcem mercado.

“Quando os países ricos interferem no comércio e nos preços, os produtores que não recebem subsídios em países em desenvolvimento acabam perdendo espaço no mercado”, disse ele a Diálogo Chino.

Em vez disso, Rodrigues prefere os esquemas de seguro rural, porque eles protegem os produtores contra perdas relacionadas ao clima. Ele disse que esses esquemas são mais parecidos com as políticas de segurança alimentar para populações urbanas do que com políticas agrícolas.

Os Estados Unidos, o Canadá e a Argentina estão entre os países que alcançaram a autossuficiência em grãos, armazenando até 120% da produção, segundo a FAO. O excedente geralmente é desperdiçado, mas ajuda os produtores a absorverem prejuízos financeiros.

O método de produção industrial que é defendido por esses países acaba criando “um ciclo vicioso” para o clima, disse Benton.

São plantadas algumas culturas de fácil transporte, o que tem o efeito de baixar os preços para os consumidores. Esses grãos são usados para a alimentação de animais que emitem metano, cuja criação impulsiona o desmatamento, acelera as mudanças climáticas e depois causa impactos na colheita e na “densidade nutricional” dos alimentos.

Da produção industrial aos sistemas em pequena escala

A produção alimentar industrializada leva a um cenário perverso: são 820 milhões de pessoas sem acesso à alimentação básica e 2 milhões de pessoas acometidas por obesidade devido a uma dieta baseada em grãos processados e açúcar.

Essa foi uma das principais descobertas do relatório EAT-Lancet Report, que investigou saúde, dietas e sistemas alimentares sustentáveis. O relatório recomendou que se dobrasse o consumo atual de castanhas, frutas, verduras e legumes.

Benton disse que os esforços multilaterais de combate à fome sempre focaram no conteúdo calórico das dietas, não no nutricional.

Trápaga se posicionou contra o sistema atual de produção, que é baseado na monocultura e na especialização, citando as civilizações pré-colombianas, que sempre consumiram um cardápio variado e que supria todas as suas necessidades.

Ela destacou o tradicional método mesoamericano de produção agrícola, conhecido como Milpa, em que vários alimentos diferentes são plantados no mesmo local. A área de plantio recebe diversas culturas e assim são eliminados os canais que permitiriam ao vento causar a erosão do solo e o alastramento das pragas.

“A colheita é menor do que a do sistema especializado, mas o resultado compensa”, disse Trápaga. “Você cria uma barreira natural que protege contra as pragas. Se elas atacam uma plantação de milho, a tendência é elas seguirem em frente até acabar, mas, se chegam em uma cultura diferente, elas param”.

Também não há necessidade de adubo químico, uma vez que culturas como feijão e grão-de-bico naturalmente repõem os nutrientes do solo, como o nitrogênio.

Alejandro Guarin, pesquisador de sistemas alimentares informais no Instituto Internacional para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (IIED), disse que o encontro da FAO é uma oportunidade importante para apoiar a produção agrícola familiar e local, liderada muitas vezes por mulheres, e que proporciona mais benefícios aos pobres:

“É um sistema que a FAO ignorou por muito tempo”, disse ele.

“O sistema precisa integrar aqueles que trabalham e se beneficiam do sistema alimentar dos pobres. Deve reconhecê-los como aliados no desenvolvimento de um sistema alimentar mais justo e mais sustentável”.

Rodrigues concorda que precisamos de alimentos mais nutritivos e mais saudáveis, mas disse que, em uma economia globalizada, a produção local só faz sentido se for mais barata do que a produção sustentável de outros países.

Com a opção de concorrer a dois termos consecutivos, o próximo diretor da FAO pode ficar no comando da organização até 2030, prazo final para alcançar as Metas de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas.

“Essa é a década do ‘ou vai ou racha’”, disse Benton.

Robert Soutar é chefe de redação no Diálogo Chino