Internacional

Combate à seca é causa de divórcio político no Brasil

A transposição do rio São Francisco, em processo, implica a construção de 713 quilômetros de canais para levar água a 12 milhões de habitantes do interior do semiárido. Foto: Mario Osava/IPS
A transposição do rio São Francisco, em processo, implica a construção de 713 quilômetros de canais para levar água a 12 milhões de habitantes do interior do semiárido. Foto: Mario Osava/IPS

 

Paulo Afonso, Brasil, 31/7/2013 – As decisões do governo brasileiro para combater a seca na região Nordeste são um exemplo das desavenças entre o poder político e parte da sociedade, que explodiram em junho em inesperados protestos nas ruas. Ainda que abraçando uma solução nascida da população, de disseminar reservatórios para armazenar água da chuva, o governo de Dilma Rousseff o fez de tal forma que nega aspectos essenciais da iniciativa, desconhecendo uma experiência bem-sucedida de uma década, segundo autores dessa ideia.

“Não nos ouviram”, lamentou Naidison Baptista, coordenador da Articulação Seminário Brasileiro (ASA), a rede que reúne quase mil organizações não governamentais, comunitárias, sindicais, religiosas e camponesas, criada em 1999 para garantir água potável às famílias rurais pobres e vulneráveis às secas. A presidente Dilma anunciou, em julho de 2011, que até o final de seu mandato, em 2014, o Estado distribuirá 750 mil cisternas na zona do semiárido, por meio do programa Água para Todos, incluído em seu plano de erradicação da miséria.

Isso teria representado o triunfo definitivo e com juros do movimento iniciado pela ASA, que registra 476.040 cisternas rurais construídas até o dia 17 deste mês, quase metade de sua meta. Com as prometidas pelo governo, se universalizaria o benefício entre a população necessitada. No semiárido, o interior do Nordeste de escassas chuvas, cuja extensão supera os territórios somados de Alemanha e França, vivem 22 milhões dos 198 milhões de brasileiros. Quase 8,6 milhões deles são camponeses, segundo o censo de 2010.

Entretanto, as cisternas oferecidas pelo Ministério de Integração Nacional, encarregado do programa do governo, são de plástico, feitas industrialmente e distribuídas por intermédio dos governos estaduais e municipais. “É o velho modelo sem participação da população”, observou Baptista à IPS. Volta-se à relação paternalista das doações de governantes, gerando dependência dos beneficiados, pois não conhecem a origem nem sabem como manter o produto. Sem se envolver no processo de sua construção, não cuidam, ressaltou.

Já as cisternas da ASA são feitas de cimento por pedreiros locais e instaladas pelos próprios moradores, que se capacitam na gestão da água para que dure os oito meses de estiagem e permaneça sempre potável. Assim, as obras dinamizam a economia local, ao consumir material e serviço de fornecedores próximos, ampliando o trabalho remunerado em um mercado que carece de empregos. É uma solução “endógena, autônoma”, que contribui para a convivência com o semiárido e distribui renda, ressaltou Baptista.

Por sua vez, o programa governamental concentra a renda em poucas empresas distantes e reforça a tradicional “indústria da seca”, expressão que designa a exploração da tragédia, cobrando altos preços pela água suja que é entregue em caminhões-tanque ou trocando por votos. Além disso, uma cisterna de plástico custa R$ 5.090, reconhece o Ministério de Integração, mais que o dobro do custo de uma de cimento. Isso, multiplicado por centenas de milhares, resulta em “um mercado de grande lucro” para a indústria, apontou Baptista.

A ASA lançou a campanha Cisternas de Plástico PVC – Somos Contra, depois da decisão do governo em 2011. É uma “armadilha” porque exclui a população local do processo e da reprodução da técnica, acrescentou Baptista. O governo federal diz que a produção industrial em grande escala é necessária para acelerar a disseminação dos sistemas de armazenagem de água potável e agrícola, em um momento de forte e prolongada seca. Mas é uma “falsa” justificativa, já que a ASA pode mobilizar até três mil organizações locais e multiplicar suas ações se contasse com financiamento correspondente, responde Baptista.

A decisão federal exigiu um ajuste institucional, que transferiu o protagonismo aos governos locais, em detrimento das organizações da sociedade civil. Como primeira consequência, o Ministério de Desenvolvimento Social (MDS) suspendeu sua ajuda ao Programa Um milhão de Cisternas (P1MC), que a ASA realizava desde 2003 com apoio diversificado de bancos, empresas e doadores estrangeiros, além do governo nacional.

Contudo, uma mobilização de aproximadamente 15 mil pessoas, no dia 20 de dezembro de 2011, em Petrolina, polo de fruticultura irrigada do Nordeste, fez o MDS voltar atrás e assinar novos acordos com a ASA. As cisternas de polietileno proliferaram desde o ano passado, mas são rejeitadas em certas comunidades. Algumas prefeituras, como a de Serra Talhada, em Pernambuco, também não as aceitaram.

O plástico deforma com o Sol forte e “a água fica muito quente, afetando o estômago”, se queixou Rosalina Maria de Jesus, uma indígena com “mais ou menos 70 anos”, do povo Pankararú, também de Pernambuco. As cisternas industriais afetadas pelo calor foram substituídas e corrigidas nas fábricas, mas restou a desconfiança de que não resistirão muito tempo ao Sol tropical. Em alguns municípios lotam praças durante semanas ou meses diante da lentidão das prefeituras em entregá-las às famílias.

Em um desses casos, Maracás, na Bahia, 830 cisternas de PVC pegaram fogo depois de 40 dias de permanência em um terreno municipal. As de cimento, que duram muitas décadas, foram criadas por um jovem camponês que, em 1955, emigrou para São Paulo, onde aprendeu a construir piscinas. Depois de voltar para a Bahia, inventou as placas pré-moldadas que permitem, em poucas horas, fazer o depósito que está matando a sede e salvando vidas infantis antes ceifadas pela água contaminada.

Os dois tipos de cisterna convivem na aldeia Pankararú como em muitos municípios. As de plástico refletem um avanço, dentro do governo, da velha concepção de “combate à seca”, que acumulou fracassos na história do Nordeste. Sua maior obra atual é a transposição do rio São Francisco, criado para levar água a 12 milhões de pessoas, principalmente urbanas.

O megaprojeto iniciado em 2007 assombra a opinião pública por seu custo crescente, hoje de R$ 8,2 bilhões e contínuas interrupções na construção de seus 713 quilômetros de canais a céu aberto, fazendo temer um novo “elefante branco” no semiárido. Já a ASA promove a “convivência com o semiárido”, cujo exemplo mais notável são as cisternas para a população rural difusa, a mais afetada pelas secas.

A ambiguidade do atual governo, que destina a iniciativas da sociedade, como a ASA, recursos ínfimos em comparação com os elevados investimentos em megaprojetos, estimula os atuais protestos de rua. Na população cresce a desconfiança e se crê que as decisões nacionais se converteram em negócios entre governantes e grandes empresas. Envolverde/IPS