Sociedade

Coronavírus mostra a necessidade de uma saúde gratuita para todas as pessoas – agora

Por Winnie Byanyima*, ONU Brasil – 

Em artigo, a diretora-executiva do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (UNAIDS), Winnie Byanyima, faz um alerta: “três pessoas a cada segundo são levadas à extrema pobreza ao pagarem por serviços de saúde. Cobrar pelos serviços de saúde não prejudica apenas os diretamente afetados – coloca todos em risco”.

Winnie Byanyima traz exemplos do Sri Lanka, Jamaica e Serra Leoa para mostrar que o país não precisa ser rico para oferecer serviços de saúde gratuitos a todas as pessoas. “Mesmo em ambientes frágeis, as remoções de custos, quando planejadas e implementadas adequadamente, melhoram os sistemas de saúde e protegem os vulneráveis. Globalmente, porém, o ritmo do progresso é muito lento e o impacto da pandemia da COVID-19 é testemunha de que os líderes econômicos subestimaram os riscos econômicos de baixos investimentos em saúde eqüitativa”. Leia o artigo na íntegra.

A crise causada pela epidemia de Coronavírus foi um choque dramático para todos. Mas, para as comunidades afetadas pelo HIV e Aids, a crise não apenas causou choque às pessoas já vulneráveis, como também trouxe outras reações — um sentimento perturbador de déjà vu e uma solidariedade apaixonada, empática e feroz com todas as pessoas afetadas pelo coronavirus.

Não há duas pandemias iguais. Todas exigem uma resposta específica e personalizada. Mas também temos um dever, quando fraquezas estruturais perigosas, injustas e insustentáveis são expostas por uma pandemia, deixadas sem solução e, em seguida, comprometem a luta contra uma segunda pandemia, de garantir que não esperemos a terceira.

Todas as pessoas envolvidas na luta contra a Aids estão determinados a fazer tudo o que podem para apoiar os afetados pela epidemia do coronavírus. Estamos ao seu lado. Esperamos anos por muitos dos avanços pelos quais lutamos, e ainda estamos esperando por muitos outros; nos recusamos a deixar que os líderes os façam esperar nesta nova crise, como eles nos fizeram esperar. A hora de corrigir os rasgos em nosso tecido social é agora.

A comunidade do HIV uniu-se à resposta de emergência em solidariedade às pessoas afetadas e também insistiu que os líderes reconheçam que a saúde é um bem público — que a saúde de cada um de nós depende da saúde de todos nós.

Os cuidados de saúde devem ser oferecidos a todas as pessoas gratuitamente, financiados pela receita pública. Serviços de saúde de qualidade são um direito humano, não um privilégio, e nunca devem depender de quanto dinheiro você tem no bolso.

Os governos devem fornecer serviços de saúde financiados publicamente a todas as pessoas, através de sistemas fiscais progressivos, nos quais todos, incluindo os super-ricos e as grandes empresas, paguem sua parte justa. Os sistemas de saúde pública devem oferecer serviços que alcancem as pessoas mais necessitadas.

Como parte disso, os governos devem apoiar serviços centrados nas pessoas e financiados publicamente. Medicamentos de ponta e cuidados com a saúde devem ser fornecidos de forma acessível e em escala, para todas as pessoas, não importa onde morem.

As taxas de serviço são uma falsa economia e uma grave injustiça — são impostos cobrados dos doentes, que aumentam a mortalidade e a morbidade, e agravam a pobreza e as desigualdades.

Décadas de experiência mostraram que essas cobranças impedem as pessoas, especialmente as famílias de baixa renda, de usar os serviços de saúde de que precisam, aumentam a pobreza e são formas altamente ineficazes e regressivas de financiar os cuidados de saúde.

Em sua manifestação mais obscena, em vários países, enfermarias de hospitais transformadas em prisões de pacientes devedores, acorrentados às suas camas até que suas famílias vendam ativos ou emprestem dinheiro de financiadores para libertar seus entes queridos.

Mesmo em outros lugares mais “moderados”, as famílias ficam em situação de falência ou sem terra, e impotentes pelos custos dos cuidados. As pessoas morrem porque não podem arcar com os custos. Três pessoas a cada segundo são levadas à extrema pobreza ao pagarem por serviços de saúde.

Cobrar pelos serviços de saúde não prejudica apenas os diretamente afetados – coloca todos nós em risco. A COVID-19 não será interrompida se algumas pessoas não puderem pagar por testes ou tratamento.

Ban Ki-Moon (ex-Secretário-Geral da ONU) destacou em janeiro, antes da epidemia explodir: “Os gastos com saúde subiram, o que significa que mais pessoas estão empobrecendo por causa dos custos de saúde. Isso não só prejudica o alcance da saúde universal, mas também é uma ameaça à segurança global da saúde. Os altos gastos privados em saúde também inibem o progresso em direção a outros Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, incluindo a eliminação da pobreza, a redução da desigualdade e a igualdade de gênero”.

Após os horrores da Segunda Guerra Mundial, vários países europeus e o Japão introduziram cuidados de saúde universal. Após as crises financeiras e de Aids, a Tailândia também. Todas essas reformas da cobertura universal de saúde proporcionaram enormes benefícios econômicos e de saúde para as pessoas.

Agora, nesta crise, líderes em todo o mundo têm a oportunidade de construir os sistemas de saúde que sempre foram necessários e que agora não podem mais ser adiados.

Os países não precisam ser ricos para oferecer serviços de saúde gratuitos a todas as pessoas – como o Sri Lanka há muito tempo vem mostrando. E o impacto da remoção de taxas é comprovado e profundo. A Jamaica viu um aprimoramento ao acesso aos serviços de saúde entre crianças e adolescentes depois que mudou sua política de custos em 2007, com as pessoas mais pobres se beneficiando mais.

A Serra Leoa mostrou que, mesmo em ambientes frágeis, as remoções de custos, quando planejadas e implementadas adequadamente, melhoram os sistemas de saúde e protegem os vulneráveis.

Globalmente, porém, o ritmo do progresso é muito lento e o impacto da pandemia da COVID-19 é testemunha de que os líderes econômicos subestimaram os riscos econômicos de baixos investimentos em saúde eqüitativa.

Ao abordar a crise atual, uma das principais ações práticas que os líderes podem implementar imediatamente é lançar reformas na saúde verdadeiramente universais e financiadas publicamente para cobrir toda a população – não apenas nos serviços COVID-19, mas em todos os serviços.

Isso custaria cerca de 1-2% do PIB a curto prazo, nada grande em comparação com alguns dos enormes estímulos fiscais já planejados.

A comunidade internacional também tem uma obrigação moral profunda e um interesse coletivo em dar suporte à expansão da saúde universal, apoiando moratórias no pagamento de dívidas para liberar recursos dos países em desenvolvimento, e para investir em seus sistemas de saúde.

O Secretário-Geral da ONU pediu aos líderes para se lembrarem que “nós só somos tão fortes quanto o sistema de saúde mais fraco de nosso mundo interconectado”.

Doadores bilaterais e instituições financeiras internacionais, incluindo o Banco Mundial e o FMI, também devem oferecer doações – não empréstimos – para enfrentar os impactos sociais e econômicos da pandemia nos grupos pobres e mais vulneráveis, incluindo trabalhadores do setor informal e populações marginalizadas.

A maioria dos países de baixa renda já está altamente endividada; é imoral pressioná-los a pegar mais empréstimos para combater uma ameaça existencial que o mundo inteiro está enfrentando. É urgentemente necessário um processo amplo e equitativo de alívio da dívida, não apenas para responder à crise da COVID-19, mas também para encurtar o período de recuperação e criar condições para o crescimento.

Antes do ataque do Coronavírus, os defensores do status quo injusto e insustentável da saúde, alegavam que o atual sistema de retalhos, fragmentado e baseado em riqueza, funcionava perfeitamente. Mas agora os danos desse sistema foram expostos a todas as pessoas. Saúde para todas as pessoas é essencial para resolver esta pandemia.

O melhor momento para proporcionar a saúde para todas as pessoas já passou. E o segundo melhor é agora.

*Winnie Byanyima, diretora executiva do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (UNAIDS).

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