Emoção é argumento de vida, não de vendas

Por Maria Helena Masquetti*
“Boa noite, aqui está um tênis que pode ser o ideal para seu filho, feito com este material resistente, além do design que respeita a anatomia dos pés infantis, dando-lhe mais segurança e equilíbrio ao caminhar”. Este não é, infelizmente, o texto de algum comercial conhecido, primeiro por abordar os pais em lugar de se dirigir diretamente às crianças e, segundo, por descrever os atributos do produto em lugar de simplesmente associá-lo a um brinde ou brinquedo, ou então afirmar que o tênis é o mesmo usado por algum ídolo do esporte admirado pela criança.
Bem diferente disso, as mensagens comerciais que nos chegam propõem a decisão de compra diretamente às crianças, abordando-as como consumidoras embora elas sejam consideradas incapazes, perante a lei, de praticar os chamados atos da vida civil. Até aí, trata-se de uma transgressão legal claramente pendente de uma determinação jurídica menos condescendente e mais efetiva. O problema talvez ainda maior são os efeitos da mercantilização da emoção na formação das crianças e, por que não, da própria raça humana.
Da experiência em publicidade, lembro-me do dia em que toda a agência se reuniu para ver, em primeira mão, uma campanha finalizada para câmeras fotográficas, prestes a ser veiculada. O tema foi simples e eficaz: uma sequência de imagens, envolvendo diferentes situações com crianças e apelos tocantes sobre a importância de se guardar momentos inesquecíveis da infância.
Apesar do uso de crianças para atrair a simpatia dos adultos para o produto anunciado, a campanha tinha a seu favor o fato de não ser uma mensagem para crianças, embora pudesse ser vista em qualquer horário (como volta a ocorrer agora com o fim da classificação indicativa que protegia as crianças de conteúdos inadequados à sua idade). As imagens eram realmente sensíveis, dessas que nos levam facilmente às lágrimas quando comparamos com os momentos únicos que vivemos (ou que perdemos) ao lado nossos filhos e crianças do nosso convívio.
No entanto, como reza o ditado, o diabo mora no detalhe e aquele ecoou quase em coro com as vozes da maioria dos publicitários presentes: “Vai vender que nem água!”. Em lugar de olhos marejados, uma explosão de risos e a empolgação geral pela preconização do recorde certeiro de vendas, tal como se verificou depois pelo saldo altamente positivo da campanha.

Usar temas que tocam profundamente o coração das pessoas é uma das estratégias mais comuns da publicidade, uma vez que a emoção é como o cimento fresco sobre o qual a marca ficará impressa na mente do consumidor. Porém, se usar a emoção para multiplicar vendas é banalizar o que temos de mais humano, mais grave ainda é se endereçar uma mensagem ao consumidor por sabê-la profunda a ponto de induzi-lo a comprar, tal como um pescador à espera do peixe após atirar a isca. E se isso mobiliza (ou imobiliza?) tantos adultos, o que dizer quando o público-alvo são as crianças?
“No mundo realmente invertido, a verdade é um momento do que é falso”. Esta reflexão de Guy Debord, escritor francês e autor de A sociedade do Espetáculo, resume de forma aterradora essa manipulação de algo que nos justifica e caracteriza como humanos. Por outro ângulo, Oscar Wilde, cineasta e dramaturgo britânico também critica essa naturalidade fria com a qual o marketing provoca sentimentos que ele mesmo não sente para fazer dinheiro: “Um cínico é um homem que sabe o preço de tudo, mas o valor de nada”.
Tomando como inspiração a capacidade infantil de dar vida à imaginação, resta desejar que a própria emoção leve a melhor sobre a ganância. Que ela traia os propósitos mesquinhos de um modo superior à pequenez da crença material, inundando os rostos de estrategistas, anunciantes, criadores e consumidores com as lágrimas sinceras do encantamento com a infância e da preocupação com o futuro das próximas gerações. Que o dinheiro tenha seu lugar no mundo para comprar as coisas do mundo e os sentimentos tenham seu lugar nos corações para preservar as coisas que não têm preço, perpetuando para as crianças a compreensão vital de que a emoção não se vende. (#Envolverde)
* Maria Helena Masquetti é graduada em Psicologia e Comunicação Social, possui especialização em Psicoterapia Breve e realiza atendimento clínico em consultório desde 1993. Exerceu a função de redatora publicitária durante 12 anos e hoje é psicóloga do Instituto Alana.
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Comentário
Eu discordo absolutamente da ideia do texto. Acho que o uso das emoções – nas campanhas direcionadas a adultos -, é sim, legítimo.
Se você, como profissional de marketing/ comunicação, conseguiu provocar uma emoção em alguém, ela é legítima. A emoção é sempre real, instantânea, se ela está ali é porque a própria experiência e expectativa do receptor abriu caminho para isso.
Nada está sendo roubado de ninguém,trata-se apenas de argumentação. Se houve a emoção, é porque houve identificação com aquilo que foi dito.
Como um profissional de marketing ou comunicação vai pensar seu trabalho sem emoção?
Olá, obrigada por seu comentário
Embora um adulto tenha condições de entender o porquê da mensagem tê-lo emocionado e decidir-se ou não pela compra, ainda assim trata-se de um artifício usado racionalmente com a intenção de obter um lucro.
Para as crianças, torna-se mais grave. Por não terem o juízo critico plenamente desenvolvido, elas não têm condições de distinguir e julgar o caráter persuasivo da mensagem.
Trata-se de um jogo desigual onde o estrategista sabe o que faz e com que intenção enquanto a criança não sabe que está sendo seduzida, além de acreditar nos adultos como é natural de sua condição infantil.