Opinião

Entre a pegada ecológica e o biopotencial: do bom uso dos recursos renováveis

por Ignacy Sachs*, economista e professor da  École des Hautes Études en Sciences Sociales – Artigo escrito em 2009 – 

Graças aos conceitos da pegada ecológica e do biopotencial, podemos entender melhor o impacto do desenvolvimento econômico sobre a biosfera e o potencial de recursos renováveis ainda disponíveis, à condição de usá-los de maneira ambientalmente correta.

A biocapacidade é definida como a quantidade total da capacidade regenerativa da biosfera, disponível para atender às necessidades humanas. Por sua vez, a pegada ecológica procura avaliar a capacidade regenerativa efetivamente mobilizada pelo funcionamento da economia humana no decurso de um ano. O cálculo é feito em hectares globais (hag) per capita, assim chamados porque correspondem à produtividade média mundial.1

Os últimos dados publicados pelo Global Footprint Network se referem ao ano 2005.2 Neste ano, a biocapacidade total, incluindo terras cultivadas, pastos, florestas, terrenos de pesca e terrenos construídos, era de 2,1 hectares globais para cada um dos 6.476 milhões de habitantes do nosso planeta.

Por sua vez, a pegada ecológica foi avaliada em 2,7 hectares globais per capita, incluindo 0,64 hectares globais de terras cultivadas, 0,26 hag de pastagens, 0,23 hag de florestas (lenha), 0,09 hag de terrenos de pesca, 0,07 hag de terrenos construídos e nada menos de 1,41 hag da pegada do carbono, ou seja, áreas necessárias para seqüestrar as emissões diretas e indiretas do dióxido de carbono.

Assim, em termos globais, a humanidade estaria vivendo acima das  possibilidades proporcionadas pela biosfera, acumulando um déficit anual de 0,6 hag que se traduz pela redução do capital da natureza.

Por trás deste número global os diferentes países apresentam resultados distintos. Os países de renda alta são deficitários. A sua pegada ecológica é de 6,4 hag (incluíndo 4,04 hag de pegada do carbono) enquanto que a sua biocapacidade é de apenas 3,7 hag.

No outro extremo, figuram países com uma reserva importante de biocapacidade, tais como o Gabon (pegada de 1,3 hag, biocapacidade de 25 hag, reserva de 23,7 hag) o Congo (respectivamente 0,5 hag, 13,9 hag e 13,3 hag), ou ainda a Austrália (7,8 hag, 15,4 hag e 7,6 hag).

Vários países latino-americanos dispõem de uma reserva de biocapacidade considerável: a Bolívia (13,6 hag), a Argentina (5,7 hag) e o Brasil (4,9 hag). Entre os países do BRIC, a situação do Brasil se compara com a da Rússia (reserva de 4,4 hag) e é nitidamente superior à da Índia (pegada de 0,9 hag, biocapacidade de 0,4 hag, portanto um déficit de 0,5 hag) e da China (2,1 hag, 0,9 hag, déficit de 1,2 hag).

Na interpretação destes dados, deve-se atentar ao tamanho da população de cada país. O Gabon tem apenas 1,4 milhão de habitantes, enquanto que a população da China é de 1,103 bilhão.

A título de informação, estes são os dados referentes ao Brasil, compilados pelo Global Footprint Network:

– população: 186,4 milhões de habitantes (dado de 2009);

– pegada ecológica total: 2,4 hag por habitante, incluíndo 0,61 hag de terras cultivadas, 1,11 hag de pastos, 0,49 hag de pegada florestal, 0,02 hag de terrenos de pesca, 0,04 hag de pegada de carbono3 e 0,08 hag de terrenos construídos;

– biocapacidade total: 7,3 hag por habitante, incluíndo 0,9 hag de terras cultivadas, 1,15 hag de pastos, 4,96 hag de florestas, 0,18 hag de terrenos de pesca e 0,08 hag de terrenos construídos;

– reserva: 4,9 hag.

Como era de esperar, a mídia se deleita em citar os dados globais a nível do planeta. Ao proceder assim, desvia a atenção do tema central, a saber as diferenças fundamentais entre os países deficitários (que em certa medida “colonizam” a biocapacidade dos outros através dos fluxos do comércio internacional) e os países que dispõem ainda de reservas apreciáveis de biocapacidade à espera do seu aproveitamento. As estratégias de desenvolvimento nos dois casos não serão as mesmas, embora todos devam se esforçar por diminuir a pegada ecológica e aumentar simultaneamente a biocapacidade.
Para reduzir a pegada ecológica, convém privilegiar quatro linhas de ação:

a) buscar maior sobriedade no consumo da energia, reexaminando os padrões de consumo e de mobilidade, as modalidades de transporte e o potencial para o adensamento das economias locais a fim de reduzir a dependência sobre produtos transportados a grande distância;

b) promover maior eficiência no uso final das energias;

c) proceder à substituição do petróleo e das demais energias fósseis por energias renováveis;4

d) seqüestrar os gases de efeito estufa, mediante um grande programa de plantio de árvores (economicamente produtivas e ornamentais), e/ou reciclá-los através da fotossíntese assistida e artificial em estufas.

Pari passu, devemos trabalhar no sentido de aumentar a biocapacidade, aprendendo a fazer o bom uso da natureza.

a) Para tanto, em cada bioma, devemos proceder à análise do potencial de produção do trinômio: biodiversidade – biomassas – biotecnologias, estas últimas aplicadas nas duas pontas do processo produtivo, para aumentar a produtividade de biomassa por hectare e para abrir o leque dos bioprodutos dela derivados5, alimentos humanos, rações animais, adubos verdes, materiais de construção, fibras, plásticos, e demais produtos da química verde, fármacos e cosméticos.

b) A biocapacidade poderá aumentar ainda pela mudança no uso dos solos. Neste contexto, convém observar que um hectare de campo cultivado equivale a 2,21 hag para as culturas primárias e a 1,79 hag para as culturas marginais, enquanto que o fator de eqüivalência correspondente aos pastos é de 0,49 hag. Portanto, cada hectare de pasto convertido em cultivos passa a ter uma produtividade quatro vezes maior. A conversão em cultivos de uma parcela dos pastos ocupados pela pecuária extensiva teria assim um grande impacto sobre os resultados finais do confronto entre a biocapacidade e a pegada ecológica.6 Em particular, devemos examinar a possibilidade de integrar a pecuária com a produção de oleaginosas para consumo humano e produção de combustíveis.

c) A recuperação pelo reflorestamento de áreas degradadas, a implantação de sistemas agroflorestais e de plantações arbóreas, bem como o adensamento das matas nativas com espécies economicamente úteis, contribuirão ao aumento da biocapacidade, gerando ao mesmo tempo oportunidades de trabalho decente e de renda.

d) Os cálculos atuais da biocapacidade subestimam o potencial de produção de espaços aqüaticos (aqüicultura, marecultura e cultivo de algas para fins energéticos).7

e) Finalmente, numa visão a longo prazo, convém introduzir a perspectiva de produção de biomassa em estufas instaladas em terrenos desérticos, mediante o aproveitamento de água de mar desalinizada com energia solar.

As inovações tecnológicas vão desempenhar um papel importante, tanto na redução da pegada ecológica, quanto no aumento da biocapacidade. A este respeito, convém observar que a humanidade enfrenta neste começo do século XXI um duplo desafio: o das mudanças climáticas deletérias e o das desigualdades sociais abissais associadas a um déficit crônico e grave de oportunidades de trabalho decente, acentuado ainda mais pela crise atual. As saídas da crise deverão portanto buscar uma resposta simultánea a estes dois desafios. Devemos descartar soluções que só atendem ao critério ambiental e se caracterizam ademais por uma intensidade de capital fora de alcance da imensa maioria dos países deste planeta.8

As soluções devem ser intensivas em conhecimentos e em mão de obra, poupadoras de recursos naturais escassos (água, solos agricultáveis, florestas em pé) e, na medida do possível, poupadoras de recursos financeiros.

Convém trilhar a via mediana entre o otimismo epistemológico que atribui à humanidade a capacidade ilimitada de inventar paradas tecnológicas (technological fix) à medida que surgem novos problemas, e o pessimismo radical da assim chamada ecologia profunda que trata a nossa espécie como um parasita, cuja proliferação ameaça a permanência da vida no planeta Terra.

É pouco provável que tenhamos à mão estimativas da pegada ecológica e do biopotencial a nível de cada Território da Cidadania e ainda menos a nível de cada assentamento de reforma agrária. Porém, o duplo desafio da redução da pegada ecológica e do aumento da biocapacidade pode servir de diretriz metodológica para a elaboração dos diagnósticos participativos e dos planos de desenvolvimento locais, bem como para o estabelecimento de critérios para o pagamento de serviços ambientais prestados pelas populações rurais.

Á guisa de conclusão, como já foi assinalado, o Brasil se afigura como um país detentor de uma reserva importante de biocapacidade. É uma Terra de Boa Esperança, usando a metáfora de Pierre Gourou; de certa forma, é o líder natural do conjunto das Terras de Boa Esperança constituidas por países tropicais e subtropicais com reservas de biocapacidade ainda por serem aproveitadas e expandidas.

A biocapacidade resulta da interação entre os homens e a natureza e se inscreve na longa história da coevolução da nossa espécie com a biosfera. As variações climáticas escapam (pelo menos por enquanto) ao nosso controle. Porém, somos capazes de influenciar a evolução da biocapacidade através da escolha das modalidades de ocupação do espaço, dos sistemas sociais de produção e das tecnologias empregadas, lançando mão dos resultados da pesquisa científica.

Em paralelo, deve-se proceder à redução da pegada ecológica, a começar pela diminuição drástica do desmatamento e pela substituição das energias fósseis por energias renováveis. O objetivo anunciado de desmatamento zero a partir de 2017 é perfeitamente factível, podendo-se até pensar, a partir desta data, num saldo positivo de reflorestamento.

Precisamos com urgência de uma avaliação idônea da biocapacidade do Brasil e das perspectivas de sua evolução como marco conceitual para o debate prospectivo sobre as estratégias de desenvolvimento a longo prazo. Um tal estudo deverá ser feito por biomas.9 Por que não pensar em cenários para o altamente simbólico ano 202210?

Convém ainda estreitar as relações Sul-Sul com as Terras de Boa Esperança. Além da cooperação técnica, há de ser articulada uma posição comum no debate sobre a reforma do sistema internacional, o qual não poderá se omitir à questão do tratamento diferenciado dos países com déficit ecológico e das Terras de Boa Esperança.

Nascido em Varsóvia em 1927, Ignacy Sachs cresceu e estudou economia no Brasil durante a Segunda Guerra Mundial. Ele trabalhou nos serviços diplomáticos poloneses na Índia no final dos anos 50, antes de retornar à Polônia. Ele deixou este país em 1968 e ingressou na Escola de Estudos Avançados de Paris (a atual EHESS – École des Hautes Études en Sciences Sociales) em Paris. Com sua experiência de vida em várias sociedades, ele começou a implantar uma reflexão global sobre os desafios do desenvolvimento e definiu o conceito de “ecodesenvolvimento”.