Arquivo

Entre a utopia e o desalento

Ricardo Young

A urgência das ações no campo da governança ambiental coloca em cheque a capacidade de consenso e pode, a longo prazo, colocar em risco a própria governança democrática dos países

As centenas de organizações não governamentais que participaram da atividade paralelas da Rio+20 exigiam nas praças e palanques que os governos assumissem compromissos de mudança, de transformação do modelo econômico. A crítica ao documento final, assinado por todos os 183 países representados no Rio de Janeiro denuncia uma redação insonsa, incapaz de oferecer a liderança que almejavam os discursos. No entanto, é um documento que mostra uma clara capacidade de diálogo entre governos, aponta o empresário Ricardo Young, militante da sustentabilidade empresarial e com bom trânsito entre as organizações sociais. Para ele, o simples fato de haver um documento final construído a partir do diálogo diplomático entre os países é um sinal de avanço, porque abre portas para que o a conversa continue. Com a experiência de quem frequenta com desenvoltura o Fórum Econômico de Davos e o Fórum Social Mundial, além de ser figura conhecida nas grandes conferências da ONU, como as COPs climáticas, Ricardo Young conversou com o editor Dal Marcondes sobre os resultados da Rio+20.

Carta Verde: Na Rio+20 tivemos milhares de ONGs, 183 delegações de países e um documento final construído em consenso, para isso teve que ser filtrado de todos os tipos de conflitos. O que essa conferência deixou como legado?

Ricardo Young: Precisamos entender o momento em que esta conferência aconteceu. Há muita comparação entre esta conferência e a Rio92, e existe uma grande diferença. Na Rio92 nós estávamos iniciando um novo ciclo da história recente do planeta, tinha acabado de cair o muro de Berlim e o bloco soviético tinha se dissolvido. Estávamos vivendo o início do processo de globalização. Havia um grande entusiasmo em relação à perspectiva de nova liderança global e, ao mesmo tempo, a possibilidade de se criar novas estruturas para o debate ambiental. 20 anos depois estamos vivendo em um mundo em crise, uma crise seríssima. Estamos vivendo a consciência dolorosa dos limites do planeta. Lá era um planeta a ser construído, aqui, são os limites do planeta que estamos descobrindo e a exaustão do sistema. Se considerado esses dois momentos, não havia possibilidade de a Rio+20 terminar a de uma forma otimista, porque o momento não é de otimismo. Agora, se virmos o grau de consenso que obtivemos na Rio+20 através do documento que foi aceito por todos esses países, acho que podemos dizer que temos uma plataforma sólida para se construir projetos e planos estratégicos para o futuro.

Carta Verde: No dia seguinte da Rio+20 muita gente fala em falta de decisão dos Estados. Uma das maiores conquistas das últimas décadas  foi uma certa disseminação das democracias. Querer decisões duras dos governos não seria pedir aos governos posições centralizadas?

Ricardo Young: Eu acho que faltam lideranças corajosas o suficiente para assumirem que o sistema capitalista tradicional se exauriu. Não existem lideranças no mundo, pelo menos constituídas como governos, que tenham coragem de assumir essa dolorosa verdade, até porque não se tem alternativa de consenso para essa realidade. Mas isso também é verdade para sociedade civil organizada. Uma das coisas que nós pudemos ver na conferência é que o grau de contradições das grandes organizações mundiais na área de meio ambiente e sustentabilidade é muito grande, e o mesmo na academia. Quer dizer qual é o consenso? O consenso é de que nós estamos no limite de utilização dos recursos planetários e que a pobreza é inaceitável. Agora, se a economia verde é a melhor forma de sair desse impasse ou, se o próprio capitalismo precisa ser revisto e reinventado, ou, se um outro sistema mais igualitário deveria ser considerado, são todas questões que estão em aberto. Não temos lideranças que possam romper com status quo, mas também não temos um nível de contradições que impeça uma convergência de políticas públicas em escala planetária para se iniciar realmente a era da sustentabilidade.

Outro ponto que acho interessante se colocar aqui é que os grandes vitoriosos são os países que não querem que haja uma governança planetária, que não desejam o sistema multilateral como uma alternativa à decisão soberana dos países.

Carta Verde: Quem são estes países?

Ricardo Young: São fundamentalmente os Estados Unidos, a China e a Rússia. O Brasil não sabe exatamente que posição tomar, porque em nenhum momento referendou o sistema multilateral como um sistema com poder de tomar decisões com poder de legislação, mas também não negou.

Carta Verde: Nas ruas do Rio de Janeiro se ouviu palavras de ordem anticapitalistas e, algumas, colocando a economia verde como uma maquiagem para a economia neoliberal. A questão ambiental vai reacender a polarização esquerda-direita?

Ricardo Young: Essa é uma dessas situações muito especiais da história. Os instrumentos de análise que temos à disposição, seja na visão neoliberal do Consenso de Washington, seja na visão da esquerda do socialismo mais democrático, ou das ferramentas do materialismo histórico, nenhuma delas dá conta da complexidade do que estamos enfrentando. Porque não estamos só enfrentando um capitalismo com limites. Estamos enfrentando um capitalismo cujo processo de acumulação não pode deixar de fora parcelas enormes da população mundial. Então, deve ser um capitalismo inclusivo, o que é uma contenção em termos. É um capitalismo inclusivo com limites de acumulação. Por outro lado, o socialismo e o socialismo real não apresentou também nenhuma alternativa sustentável. O socialismo real não se propôs a colocar freios nos processos industriais e nem propôs formas, alternativas de desenvolvimento que fossem mais amigáveis ao meio ambiente. No máximo o socialismo real conseguiu mitigar a exclusão social. Eu acho que é uma saída muito fácil da esquerda chamar a economia verde de uma apropriação da direita da bandeira ambientalista. O documento da economia verde tem soluções inovadoras para a questão da desigualdade social e para a questão do meio ambiente. Infelizmente essas soluções passam por uma coordenação internacional. Nenhum país individualmente pode implantar uma economia verde de forma isolada.

Carta Verde: Por quê?

Ricardo Young: Porque depende de uma reordenação de mercados, de mudanças em cadeias produtivas e de novas legislações. Depende de processos de certificação e de uma mudança na equação tradicional de uso de energia e de produção de energia. Tem uma série de pressupostos da economia verde que exige um reordenamento da economia internacional. Não dá pra se responder o desafio da economia verde de uma forma ideológica. O que é irritante nas posições mais radicais de esquerda é que eles descartam um esforço feito por dezenas de países, economistas, ambientalistas… É muito fácil descartar os avanços que a economia verde representa, mas também não podemos acreditar que as soluções que as empresas estão trazendo se constituem, por si só, em economia verde. Empresas  precisam projetar 20, 30 anos, dentro de um mínimo de razoabilidade, então estão se adaptando para um modelo que está em transformação, mas, nem por isso as empresas estão sendo realmente propositivas de um novo modelo econômico. A Rio+20 mostrou que muitos estão cegos neste tiroteio.

Carta Verde: Um dos poucos consensos em relação aos avanços da Rio+20 foi a reunião dos prefeitos das maiores cidades do mundo, que assumiram compromissos de emissão de carbono, ampliação da oferta de transporte público e uma série de políticas públicas urbanas em direção a uma sociedade mais sustentável. Como você vê esse esforço de um determinado setor do poder público, que não é o nacional, não é o supranacional, mas é o poder local?

Ricardo: Essa foi a grande boa notícia da Rio+20. Porque estamos começando a viver uma realidade, por mais paradoxal que seja, do ressurgimento das cidades-estados, porque uma parcela significativa da população mundial vive na cidade e as contradições agudas da falência do sistema e da escassez dos recursos ambientais estão se dando nos centros urbanos. É nas cidades onde a questão da escassez da água está mais aguda. O que está acontecendo com as cidades agora é que elas estão lidando com as consequências da insustentabilidade em alto grau, porque quando há catástrofes climáticas, eventos climáticos extremos, são as cidades que estão pagando na forma de inundações, desabamentos, soterramentos e assim por diante. Quando temos o colapso do sistema de transporte, são nas cidades que as pessoas ficam paradas em congestionamentos intermináveis. Quando nós temos o colapso da emissão de gases poluentes, são nas cidades que as pessoas morrem por problemas respiratórios que sobrecarregam o sistema de saúde. Então, as cidades estão vivendo ao mesmo tempo uma grande concentração da população global e a exacerbação da insustentabilidade. Junto com isso elas estão conectadas planetariamente através de seus habitantes. Os cidadãos hoje estão conectados nas grandes cidades. Isso cria uma equação política que faz com que cidades tenham um comportamento de cidades-estados e, ao fazer isso, elas vão criando modelos que podem se replicar. Então, temos uma concentração de uma conjuntura sócio-política econômica típica desse início de século XXI num momento de alta sofisticação tecnológica e de uma opinião pública planetária que está interligada em redes. Essas condições muito especiais fazem com que as verdadeiras soluções para a questão da insustentabilidade venham a emergir das cidades, o que, aliás, já está acontecendo.

Carta Verde: Em 1992 o mundo, apesar da extrema sofisticação do século XX, não tinha o instrumental tecnológico do século XXI tem. Mais especificamente a internet e as redes sociais. Qual é o impacto que esse cenário tecnológico das redes sociais terá agora e nos próximos anos, a partir do que se discutiu na Rio+20?

Ricardo Young: As redes sociais têm um papel de disseminação de uma nova consciência e eu acho que há um salto de qualidade no ciclo de informação que elas propiciam. Elas tem um papel convocatório importante e não pode ser ignorado que as redes sociais ajudam as pessoas a terem informação menos contaminada por interesses ideológicos. Agora, em contrapartida, as redes sociais criam uma acomodação sem tamanho. As pessoas atuam na rede social e não atuam na vida real. Há uma ilusão da mobilização. As redes sociais dão a ilusão de que você está engajado em um processo, mas é no mundo real que esses processos efetivamente são transformadores. E no Brasil, pelo menos, as redes sociais não têm aumentado as mobilizações na rua. Na Rio+20. Para o que estava em pauta, tinha que ter 100 mil pessoas nas passeatas e só haviam 30 mil. Mesmo assim, cerca de metade estava lá convocadas por  partidos políticos ou por movimentos sociais.  A radicalização da participação democrática é absolutamente essencial para mudança que precisamos, e acho que tem sido um pouco minada pela intensidade das redes sociais. As pessoas estão usando as redes sociais para uma ação política que elas deveriam estar exercendo nas ruas.

Carta Verde: O que nós vamos discutir na Rio+30 e na Rio+40?

Ricardo Young: Espero que não estejamos discutindo a catástrofe. Um debate recorrente é se as mudanças climáticas são provocadas pelo homem ou não e o fato é que isso é irrelevante porque independentemente do aquecimento climático a pegada humana sobre o planeta está exaurindo os recursos naturais. Não é um problema de aquecimento global, nós estamos muito além do que nós podemos estar. Na verdade, meu maior é medo é que a imobilidade das pessoas e a ausência de lideranças capazes de propor caminhos acabem fazendo com que diante de crises ambientais seríssimas nós tenhamos um recrudescimento dos estados, dos governos. E aí as pessoas simplesmente vão ser proibidas, hoje nós discutimos se devemos ter pedágio urbano, se devemos intensificar outras modalidades de transporte, discutimos o que temos de fazer para diminuir a energia fóssil etc. Podemos chegar em um mundo em que essas coisas serão mandatórias e os governos vão obrigar a população a cumprir restrições. Então a ausência da radicalização democrática hoje pode representar uma emergência do autoritarismo amanhã. E esse pode ser o quadro terrível daqui há 10, 20 anos. Onde, ao termos falhado em um série  de coisas, os governos se unam de forma autoritária.

Carta Verde: A médio e longo prazo o imobilismo diante dos desafios ambientais representam um risco para a democracia?

Ricardo: Eu acho que representam. Porque diante de catástrofes climáticas os poderes constituídos, os governos, tem todo o poder.

Dal Marcondes é jornalista especializado em jornalismo econômico, diretor e editor responsável da Envolverde Revista Digital e presidente do Instituto Envolverde.

** Conteúdo produzido pela Envolverde e publicado originalmente no suplemento Carta Verde, na revista Carta Capital.