Internacional

Guatemala, país onde a paz não chegou

 Dois meninos em uma bicicleta no centro da Cidade da Guatemala, o garupa com um revólver de brinquedo na mão. As armas são parte cotidiana nas cidades deste país centro-americano. Foto: Ximena Natera/Pie de Página

Dois meninos em uma bicicleta no centro da Cidade da Guatemala, o garupa com um revólver de brinquedo na mão. As armas são parte cotidiana nas cidades deste país centro-americano. Foto: Ximena Natera/Pie de Página

Por Fernando Santillán e José Ignacio De Alba*

Cidade da Guatemala, Guatemala, 12/4/2016 – “Não dispare sua arma. Crianças estudando”, diz o cartaz colocado em uma cerca na Universidade de San Carlos, na capital da Guatemala. O pôster faz parte de uma campanha em escolas de educação  básica contra o uso de armas, explicou Luis Ventura, estudante de agronomia, aos surpresos jornalistas que acompanham o trajeto da Caravana pela Paz, a Vida e a Justiça, e que fazem dos escritórios estudantis desta universidade uma improvisada sala de imprensa.

Os universitários, que durante 2015 convocaram e lideraram as manifestações populares que levaram à renúncia do presidente Otto Pérez Molina, foram os que receberam neste país a caravana de ativistas que busca abrir a discussão sobre a política de drogas na região e levar uma mensagem antiguerra à Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU).

Agrupados na Coordenadoria Estudantil Universitária da Guatemala, os estudantes conseguiram transporte e hospedagem para os ativistas, organizaram um encontro artístico-musical e uma reunião com o reitor da Universidade de San Carlos. Seu ativismo recorda o demonstrado pelos jovens mexicanos do movimento #yosoyde132, em 2012.“A sociedade se mobilizou a tal ponto que o processo avançou e eles acabaram por renunciar para não serem investigados”, resumiu Ventura sobre a participação dos jovens na crise política do ano passado.

Porém, Ventura se mostra precavido com os resultados:“a paz não chegou, passamos de uma guerra para outra”.A Guatemala vive em dois tempos violentos. O primeiro é do passado recente, pois ainda não terminou de cicatrizar a ferida da guerra civil (1960-1996) mais longa da região, que deixou, pelo menos, 45 mil desaparecidos e 200 mil assassinados, na maioria indígenas maias.

O conflito armado durou mais de três décadas, embora o momento mais álgido tenha sido o início dos anos 1980, com a instalação da Junta Militar e o mandato do general EfraínRíoMontt, que agora enfrenta acusações de genocídio. Nas ruas da capital ainda há cartazes com fotos dos desaparecidos nessa guerra, que formalmente terminou há 20 anos.

O segundo tempo é o do presente. O país é o mais povoado da América Central. Tem 15 milhões de pessoas, das quais mais da metade é indígena e sete em cada dez vivem na pobreza. Junto com Honduras e El Salvador, a Guatemalaforma o que se conhece como “triângulo norte” centro-americano, por sua integração econômica. Embora sejam três países que mais migrantes expulsam para o norte, têm acordos comerciais com México e Estados Unidos, mas carecem de instrumentos jurídicos que garantam os mínimos direitos dos migrantes.

Cartazes de desaparecidos da guerra civil em uma rua da Cidade da Guatemala. Foto: Ximena Natera/IPS
Cartazes de desaparecidos da guerra civil em uma rua da Cidade da Guatemala. Foto: Ximena Natera/IPS

A efervescência política que viveu em 2015 levou à renúncia e detenção do presidente Otto Pérez Molina e da vice-presidente, Roxana Baldetti, acusados de dirigirem uma rede de corrupção nas aduanas, conhecida como La Línea, que ajudou empresas estrangeiras a enganarem o sistema tributário do país e que implica mais de 40 funcionários do governo.Mas a queda do presidente não deteve a violência criminosa, nem a violência política – derivada, sobretudo, do despojo de terras –, que são só componentes comuns na região.

Um informe do Observatório para a Proteção dos Defensores dos Direitos Humanos, da Federação Internacional de Direitos Humanos e da Unidade de Proteção e Defensoras e Defensores dos Direitos Humanos da Guatemala, documentou, só em 2015, nove ativistas assassinatos e outros 337 casos de agressão contra comunidades contrárias à construção de megaprojetos.

“Os acordos de paz não conseguiram fazer uma refundação do Estado. As formas de funcionamento do Estado ficaram iguais. Gerou-se maior institucionalidade da paz e dos direitos, mas a lógica do Estado, um Estado racista, excludente, isso não mudou”, ressaltou Susana Navarro, diretora executiva da Equipe de Estudos Comunitários e Ação Psicossocial (Ecap).

Desde 1996, quando foram assinados os Acordos de Paz, o governo nacional se comprometeu a desarticular os corpos ilegais e aparatos clandestinos de segurança (Ciacas), usados pelo Estado no setor privado para a eliminação de opositores políticos. Mas isso não aconteceu. Os grupos continuaram operando como redes informais que faziam uso de relações com os setores público e privado.

Em janeiro de 2004, diante da pressão da sociedade, foi formalizada a assinatura de um acordo inédito entre a ONU e o governo guatemalteco para a criação de uma Comissão de Investigação de Corpos Ilegais e Aparatos Clandestinos de Segurança, que, em um primeiro momento, a Suprema Corte de Justiça da Guatemala considerou inconstitucional. Em dezembro de 2006, a Guatemala assinou com a ONU o estabelecimento de uma Comissão Internacional Contra a Impunidade na Guatemala (Cicig), que foi ratificada pelo Congresso em agosto de 2007 e entrou em vigor no dia 4 de setembro do mesmo ano.

A partir de então, a Cicig mudou a vida de muitos guatemaltecos. Suas investigações causaram alvoroço em todos os âmbitos políticos do país, desde o tráfico de influências no sistema penitenciário, operado da prisão por Kaibil Byron Lima Oliva, até as execuções extrajudiciais cometidas por operadores de segurança de alto nível, entre eles o ex-diretor da Polícia Nacional Civil, Erwin Sperisen, o ex-diretor do Sistema Penitenciário, Alejandro Giammattei, e o ex-ministro de Governação, Carlos Vielmann.

“A contribuição da Cicig é o profissionalismo, a investigação, é passar de uma somatória de crimes à criação de padrões de investigação, sobre fenômenos. (…) Já se animam a investigar as altas autoridades políticas, o que não ocorria no país, o mesmo com o narcotráfico. Mas, sobretudo, na questão dos políticos. Ninguém se animava em tocá-los”, destacou a diretora do Ecap.

No dia 26 de fevereiro, um tribunal condenou a 120 anos de prisão o tenente-coronel Esteelmer Reyes Girón, e a 240 anos o ex-comissário militar,Heriberto Valdez Asij, por desaparecimentos forçados e abusos sexuais contra 15 mulheres indígenas q’eqchís em um destacamento militar em Alta Verapaz e Izabal, entre 1982 e 1983. O destacamento era usado como área de descanso e lazer de militares, durante os anos mais duros da guerra.

Um mês antes, 14 militares foram detidos por envolvimento no enterro de mais de 500 corpos, encontrados em 2013 em fossas clandestinas de um quartel militar de Cobán, a 300 quilômetros da capital. A guerra – dizem aqui – não acabou. Envolverde/IPS

*Este artigo foi originalmente publicado no portal Pie de Página, um projeto da organização Periodistas de a Pie financiado pela Open SocietyFundations. A IPS-Inter Press Service tem um acordo especial com essa entidade para a difusão de seu material.