Sociedade

Hidrelétricas e povos tradicionais: 4 – O desmonte ambiental e o perigo das barragens

Por Philip Martin Fearnside, Amazônia Real –

O perigo das barragens impactarem os povos tradicionais em uma escala ainda maior é amplificado pelo desmonte geral das leis e regulamentos protegendo o meio-ambiente e os povos indígenas. Este desmonte vem ocorrendo ao longo das últimas administrações presidenciais, mas se agravou marcadamente durante o mandato do Presidente Bolsonaro, aumentando, assim, a facilidade de construir barragens em terras indígenas, quilombolas e ribeirinhas. Com o sistema de licenciamento ambiental efetivamente eliminado, como proposto por vários projetos de lei e de ementa à Constituição, a aprovação de barragens como Babaquara/Altamira, Chacorão e Cachoeira Porteira seria garantida.

Em 06 de fevereiro de 2020, o Presidente Bolsonaro submeteu o Projeto de lei PL 191/2020 ao Congresso Nacional. Se for aprovado, o projeto abrirá as terras indígenas para construção de hidrelétricas, além da mineração, agronegócio e outras atividades a serem realizadas por não indígenas. Além disso, a Funai (Fundação Nacional do Índio) publicou a Instrução Normativa nº 9/2020 de 22 de abril 2020, permitindo a ocupação por não indígenas em áreas indígenas ainda não homologadas.

Em 1989 o Brasil assinou a Convenção 169 da Organização Mundial de Trabalho (OIT), e essa Convenção foi ratificada em 1991 e convertida em uma lei em 2004. Em 06 de maio de 2020 entrou em vigor um decreto assinado pelo Presidente Bolsonaro em 05 de novembro de 2019 que “consolida” as diversas convenções da OIT assinadas pelo Brasil, e transforma em Anexo LXXI do novo decreto a lei de 2004 que implementava a Convenção 169. No entanto, desde outubro de 2019 um grupo dentro do governo está reportadamente trabalhando para encontrar uma maneira de nulificar as exigências desta Convenção.

A Convenção 169 da OIT obriga o país a consultar qualquer povo tradicional, de forma “livre, prévia e informada”, sobre qualquer projeto de desenvolvimento pelo qual o povo seria “impactado”. A palavra é “impactado”, não “inundado”, uma distinção importante já que o governo brasileiro insistiu contra todas as opiniões jurídicas, inclusive da Comissão Interamericana sobre Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos, que os indígenas a jusante de Belo Monte não precisavam ser consultados por não serem inundados pelo reservatório. O conceito de “consulta”, diferente de uma mera audiência pública, implica no direito de dizer “não” sobre a existência do projeto, e não apenas de opinar sobre como o projeto seria implementado ou como os seus impactos seriam mitigados ou compensados.

Nenhum povo indígena foi consultado até agora. As barragens de Belo Monte e São Manoel foram construídas apesar das dezenas de ações iniciadas pelo Ministério Público Federal exigindo cumprimento da lei de 2004 que exigia a consulta. Ações do Ministério Público paralisando a construção de barragens, e até decisões dos tribunais, são facilmente derrubadas por meio de “suspensões de segurança”. Isto é um mecanismo criado em 1964 pelo governo militar, e reforçado depois por leis em 1992 e 2009, que permite que qualquer obra considerada importante para a economia tenha permissão de continuar avançando independente de quantas leis, artigos constitucionais ou convenções internacionais sejam violados. Grande parte da população brasileira não sabe da existência dessas leis, assim resultando na falta de qualquer pressão para revogá-las.

As normas de IBAMA atualmente exigem a consulta para qualquer povo indígena em um raio de 40 km de uma proposta hidrelétrica ou rodovia na Amazônia. Mesmo dentro deste limite, povos indígenas não têm sido consultados. A rodovia BR-319 (Manaus-Porto Velho) oferece um exemplo do atual momento. A distância de 40 km é definida por portarias de IBAMA de 2011 e 2015, mas nem a Convenção OIT-169, nem a lei de 2004 que implementou a Convenção no Brasil, especificaram qualquer limite de distancia, a obrigação de consulta sendo para todos os povos afetados. Os impactos destas obras se estendem muito mais longe que 40 km.[1]

A imagem que ilustra este artigo mostra um grupo de indígenas Munduruku em julho de 2017 na Usina Hidrelétrica de São Manoel em um protesto contra a obra. (Foto: Juliana Pesqueira/FTP)

Nota

[1] Esta série provém de uma contribuição do autor a um diagnóstico sobre contribuições dos povos indígenas, quilombolas e tradicionais à biodiversidade no Brasil e as políticas públicas que as afetam, organizado por Manuela Carneiro da Cunha, Sônia Maria Simões Barbosa Magalhães Santos e Cristina Adams para a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).

Philip Martin Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 600 publicações científicas e mais de 500 textos de divulgação de sua autoria que estão disponíveis aqui.

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