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A intolerância se cura brincando

brincarDe repente, parece que a evolução retrocede séculos: “O que uma baiana daquelas vai fazer em Londres?”, vocifera uma moça para outra no provador de uma loja, referindo-se à viagem que a empresa onde trabalhava concedera a uma colega por um melhor desempenho. Tantas conquistas e descobertas, tanta gente fazendo a diferença por um mundo melhor e, mesmo assim, falas ofensivas como a citada ainda ecoam sem qualquer pudor seja nas ruas, shoppings, escolas ou estádios de futebol.

“Ela tem um look péssimo, não tem classe, não fala inglês fluente, fez faculdade com bolsa” foram alguns dos argumentos que a moça ficou por lá justificando, incluindo a pérola: “Se ainda tivessem escolhido alguém de nível, mas aquilo?”. Sim, ela usou o termo “aquilo” para se referir à colega que ganhara um prêmio por seu talento e determinação.

Adiantaria dizer a ela e a quem mais compartilhe de sua opinião que não se pode ter tudo? Será que admitiriam que ao emparelhar com eles na corrida da vida, o outro com menos recursos mereceria até mais medalhas por ter feito um percurso idêntico, porém com obstáculos? Precisamos acreditar que sim, embora eles tivessem que admitir primeiro que considerar-se superior, por mais elevada a posição social, é uma patologia grave. Não bastasse a psicologia e a psiquiatria atestarem largamente isso, qualquer um de coração menos intolerante concluiria o mesmo e ainda suspeitaria de que algo negativo aconteceu na infância daquela moça.

Em geral, a convicção de ser superior tem pelo avesso um sentimento antigo de inferioridade que o indivíduo tenta compensar menosprezando pessoas aparentemente menos afortunadas. Como um troco irônico da natureza, o próprio fato de ter que rebaixar o outro para se sobressair faz com que ele se sinta cada vez mais incompetente e inseguro.

Se a moça irada tivesse experimentado a alegria do pertencimento e do compartilhar entre crianças, traria impressa na alma a certeza da igualdade.  Se tivesse brincado com liberdade, entenderia hoje que sem a participação do outro, o jogo da vida não continua. Embora o brincar favoreça também um espaço íntimo para criar, é somente na parceria com outras crianças que o pique-esconde, o brincar de casinha, o apostar de corridas, a brincadeira de roda e tantas outras interações acontecem, valorizando as diferenças e transformando-se em lições para toda vida.

Por não existir condições e talentos iguais, a qualidade de cada um não é comparável. Como comparar um girassol e uma rosa? Fora isso, o que mais tem consagrado pessoas como verdadeiramente superiores senão o fato delas reconhecerem sua pequenez perante a capacidade humana de surpreender apesar das adversidades? As crianças reconhecem isso brincando. Resta então torcer para que a moça do provador se cure de sua enfermidade, trocando o desdém pelo respeito, e que a colega que ela execrou não esteja perdendo muito tempo nos shoppings, mas ampliando sua visão de mundo e se deliciando como criança na roda gigante de Londres.

Maria Helena Masquetti é graduada em Psicologia e Comunicação Social, possui especialização em Psicoterapia Breve e realiza atendimento clínico em consultório desde 1993. Exerceu a função de redatora publicitária durante 12 anos e hoje é psicóloga do Instituto Alana.