“Literatura brasileira não trata dos trabalhadores”

Em entrevista ao Brasil de Fato SP, Luiz Ruffato conta que sempre encarou ser escritor como ser torneiro mecânico ou médico. “Se as pessoas sobrevivem com essas profissões, por que eu não posso como escritor?”, afirma. Foto: Rafael Stedile
Em entrevista ao Brasil de Fato SP, Luiz Ruffato conta que sempre encarou ser escritor como ser torneiro mecânico ou médico. “Se as pessoas sobrevivem com essas profissões, por que eu não posso como escritor?”, afirma. Foto: Rafael Stedile

 

Os trabalhadores brasileiros, que tomam ônibus e batem cartão, não são retratados em nossa literatura. É o que diz o escritor Luiz Ruffato, um dos principais nomes da nossa produção nacional atualmente.

Vindo de uma família pobre, foi justamente essa ausência que fez com que Ruffato decidisse pela escrita. “Me dei conta de que as pessoas que eu conhecia não apareciam na literatura brasileira”, diz. Dessa inquietação surgiu “Inferno Provisório”, série de cinco livros sobre a classe trabalhadora brasileira.

Mineiro de Cataguases, Ruffato vive em São Paulo desde os anos de 1990. A vida paulistana também mereceu a atenção do escritor, através de “Eles eram muitos cavalos”. A obra, publicada em 2001, recebeu prêmios e trouxe reconhecimento ao autor – já foi publicada em seis outros países.

Nesta entrevista ao Brasil de Fato SP, Ruffato discute o cenário literário atual e critica a falta de qualidade da educação. “É muito mais fácil manter uma população ignorante.”

O seu último livro “Domingos sem Deus” encerra uma série que fala sobre a classe trabalhadora brasileira. Por que resolveu escrever sobre esse tema?

Para responder isso eu tenho que explicar um pouco a minha biografia. Eu nasci em Cataguases, no interior de Minas Gerais. Meus pais eram filhos de imigrantes italianos e portugueses. A minha mãe era lavadeira de roupas, era analfabeta, e meu pai era pipoqueiro, semianalfabeto. Eles moravam na periferia da cidade. Eu nasci e cresci em bairros operários. Trabalho desde os seis anos de idade, trabalhei como operário têxtil, como torneiro mecânico.

E como isso te levou a escrever a série?

Eu comecei a estudar jornalismo em Juiz de Fora, que é uma cidade próxima a Cataguases. Foi aí que me dei conta de que a literatura brasileira não trata das pessoas que eu conhecia, das pessoas com quem eu convivi no bairro operário. Nesse momento, surgiu a ideia de pensar em escrever um dia. Mas isso demorou. Só depois de muito tempo que fui escrever os cinco volumes de “Inferno Provisório”.

Por que você acha que essas pessoas não eram retratadas na literatura?

Por dois motivos muito simples. O primeiro é que os escritores, em geral, são de classe média alta, portanto não conhecem essa realidade. A literatura brasileira tem muito bandido, isso a classe média alta conhece e até romantiza. Mas o trabalhador, aquele que pega ônibus, que bate cartão, esse cara a classe média alta não conhece. O segundo motivo é que a sociedade brasileira é tão cruel com quem vem de baixo que, mesmo no caso de escritores que nasceram na classe média baixa, a primeira coisa que eles fazem para serem aceitos na sociedade é fingir que nunca foram pobres. Antes de “Inferno Provisório”, você publicou “Eles eram muitos cavalos”, que fala sobre São Paulo.

Por que você, mineiro, resolveu escrever sobre São Paulo?

Eu sou mineiro, mas moro em São Paulo desde a década de 1990. Acho que ninguém que não nasceu numa cidade se sente à vontade para dizer que é dali. Porque não é, nunca vai ser. Nós vamos ser sempre migrantes. Então foi uma maneira de eu tentar, falando sobre São Paulo, me entender dentro da cidade.

Como é ser um imigrante em São Paulo?

Eu acho que o imigrante nunca deixa de ser imigrante. Tem uma piada judia que diz: “Para o imigrante, o problemas são só os primeiros 50 anos, depois você se acostuma”. E é mais ou menos isso. A grande vantagem que São Paulo tem em relação ao restante do Brasil é que, quando eu vim para cá, ninguém perguntou de quem eu era filho. Ruffato em Minas Gerais não quer dizer absolutamente nada. E em Minas você tem que ter um sobrenome bacana para ser alguma coisa. São Paulo tem essa vantagem. Só que é uma cidade cruel, é uma cidade muito dura para o imigrante. Você sofre muito para poder alcançar algum lugar. Mas é possível.

De onde vieram as histórias de “Eles eram muitos cavalos”?

O escritor escreve a partir da sua experiência. E a experiência é uma coisa muito ampla. Pode ser você ouvir uma história, ver uma história ou vivenciá-la. O que eu trouxe para “Eles eram muitos cavalos” é um pouco da minha experiência como uma pessoa que gosta de caminhar pela cidade. Não tenho carro, portanto ando muito de ônibus e de metrô. E também fico muito atento a escutar, às vezes, a conversa dos outros. Agora, com o celular, é uma maravilha. As pessoas contam coisas inacreditáveis no ônibus, em qualquer lugar, elas contam coisas absurdas. Para mim é ótimo, eu acho excelente.

Como você avalia o momento da literatura brasileira hoje?

A gente está vivendo o melhor momento da literatura brasileira em termos de produção. Há 20 anos não havia uma literatura que se passasse no Centro-Oeste ou no Norte do país. Hoje acho que todas as regiões estão contempladas. Também temos quase que meio a meio mulheres e homens escrevendo, o que também é uma coisa bastante contemporânea. E ainda temos literatura sendo feita nas mais diversas camadas sociais. Desse ponto de vista, temos avançado muito, embora ainda existam lacunas impressionantes, que são fruto da extrema desigualdade do Brasil. Ainda não temos, por exemplo, uma literatura produzida por indígenas que não seja literatura infantil. Mesmo a presença do negro como escritor é muito pouca.

E em relação à leitura?

O grande problema que nós enfrentamos ainda é que temos um índice de leitura de quatro livros por ano, o que é ridículo. Temos um sistema de educação péssimo. Então, se de um lado estamos com uma produção muito grande, nós temos lacunas muito grandes do outro lado, que impedem que essa literatura seja melhor consumida. O Estado não cumpre minimamente esse papel. E não é deste governo, é em todos os governos. Ninguém até hoje teve interesse em possibilitar uma educação de qualidade. Para mim está muito claro, cada vez mais, que fazem isso porque é muito mais fácil manter uma população ignorante, é mais fácil de manipular.

Você acha que seus livros podem chegar às pessoas do proletariado que você retrata?

Evidentemente que não. Se nem a classe média que estuda na PUC lê, imagina um operário. Não lê. O leitor brasileiro é geralmente estudante de letras, de jornalismo, das áreas de ciências humanas em geral, e uma pequena parcela de pessoas que gostam de ler porque adquiriram esse hábito na infância. Quem é o meu leitor? Em tese é jovem, está entre 25 e 35 anos, está no centro-sul, é de classe média, média alta. O meu leitor é exatamente o leitor padrão brasileiro. Não tem diferença.

A literatura brasileira está ganhando mais espaço lá fora?

Não. Isso é uma ilusão. A literatura é política. Uma literatura só tem importância se o país no qual ela é produzida tem importância. A literatura de língua inglesa hoje é a maior, tem hegemonia. Mas não é porque ela é melhor, é simplesmente porque os EUA e a Inglaterra mandam no mundo, portanto a literatura deles acaba também sendo hegemônica. Houve um tempo em que era a literatura francesa. Não é porque era a melhor, é simplesmente porque ela estava a serviço de um país.

Quando você decidiu ser escritor?

No meu caso foi uma decisão mesmo. Acho que foi no momento em que comecei a ler a literatura brasileira com um olhar mais crítico e percebi que ela não retratava esse universo que eu conhecia, isso foi quando eu entrei na faculdade de jornalismo, na década de 1980.

Foi quase uma decisão política, então.

Foi uma decisão política. Não é quase. Mas, veja bem, essa decisão política não pode prescindir de uma decisão estética. Eu nunca abri mão disso. Por isso que eu nunca admiti ser reconhecido como um escritor de literatura social, ou literatura política, ou literatura proletária.

Por quê?

Porque os brancos de classe média alta fazem literatura com L maiúsculo, e todo o resto faz literatura negra, literatura marginal, literatura feminina, literatura gay. Eu nunca caí nessa armadilha. Se a classe média alta e branca faz literatura com L maiúsculo, então eu também faço. Não é porque eu trato de operários ou de classe média baixa que não faço literatura.

Como conciliou sua formação como escritor com as tarefas do cotidiano?

Eu sempre fui muito disciplinado, vim para São Paulo trabalhar como jornalista e trabalhava muito. Todas as horas de folga que eu tinha, eu ia estudar. E consegui fazer minhas coisas. Eu crio minha filha sozinho desde que ela tinha 8 anos, e portanto consegui ainda também conciliar minhas tarefas domésticas. Acho que quando você quer fazer alguma coisa, você faz.

E agora você é só escritor?

Há 11 anos. Eu larguei o jornal num momento em que não se falava em ser escritor. Mas resolvi bancar isso, e criei minha filha como escritor. Por algum motivo eu acabei conseguindo.

Por que acha que conseguiu?

Eu consegui porque sempre encarei o fato de ser escritor como ser torneiro mecânico, como ser jornalista, gari, médico ou engenheiro. Se as pessoas ganhavam dinheiro com essas profissões, por que eu não podia ganhar como escritor? Nunca encarei isso de ser escritor como uma coisa sagrada. Sempre achei isso um porre, uma forma da classe média alta dizer que existem pessoas que são iluminadas e vocês, que não são. Eu sempre entrei pela porta do fundo.

* Publicado originalmente no site Brasil de Fato.