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Natal, o paraíso pelo consumo

Todo final de ano multidões se acotovelam em lojas ao redor do mundo para comprar sonhos, sorrisos e felicidade no formato de brinquedos, roupas e presentes.

Luzes e enfeites de Natal estão acesos pelas cidades. Nas casas as pessoas começam a planejar as festas e as crianças escrevem cartas ao Papai Noel. Na TV, os repórteres fazem a pergunta clássica a lojistas compenetrados: “esse Natal será melhor do que o do ano passado?”. Com o olhar sério o entrevistado esgrime alguns números para dizer que “deve ser um bom Natal”. Na verdade, o Brasil está entre os poucos países a ter o que o comércio chama de um “bom Natal”, principalmente por conta da boa fase da economia, que se mantém estável mesmo com a grave crise que assola os países europeus e os Estados Unidos. Um Natal com muitos presentes e festas, ainda que o futuro esteja obscurecido pela falta de perspectivas do chamado “primeiro mundo” em retomar seu papel de locomotiva da economia global.

Desde 2002, o Brasil tem conseguido uma grande mobilidade social. Até 2008, foram mais de 25 milhões de pessoas que saíram das classes D e E para a classe C, a porta de entrada da classe média. E, até 2014, existe a estimativa de que outros 14,5 milhões de pessoas deixarão a pobreza, além da ascensão de 36 milhões entre as classes A, B e C. Este cenário é muito positivo sob o ponto de vista social. Milhões de pessoas que passam a ter acesso aos benefícios do consumo e a melhor qualidade de vida em habitação, saúde, educação, etc. No entanto, esta realidade impõe outros desafios para a gestão dos recursos do país. O que economistas e planejadores se perguntam é como garantir o fornecimento de bens e serviços a essa nova classe média sem comprometer ainda mais os ecossistemas.

O desafio posto é promover a sustentabilidade e o combate à desigualdade ao mesmo tempo. “Esta é uma preocupação muito atual, por conta do acesso de grandes contingentes de pessoas ao consumo de massa. Se, de um lado, isto permite a necessária melhoria na qualidade de vida, de outro, expõe, em escala preocupante, os impactos negativos dos atuais modelos de produção e consumo”, explica Helio Mattar, presidente do Instituto Akatu pelo Consumo Consciente. O modo atual de vida das populações mais ricas já consome 50% mais em recursos do que o planeta é capaz de regenerar. A capacidade da Terra de renovar água e ar, terras aráveis e de absorver os descartados do consumo já foi ultrapassada. E isso enquanto 20% da população é responsável pelo consumo de 80% dos recursos. No momento que os demais 80% da população mundial começa a participar mais fortemente do  consumo de massa, será preciso produzir com um impacto muito menor em matérias-primas e energia. “Para atender a totalidade da população do planeta dentro do mesmo modelo atual de produção e consumo, seriam necessários quase cinco planetas Terra”, argumenta o presidente do Akatu. No entanto, é bom lembrar que existe apenas um planeta Terra.

Nova classe média aquece o mercado

No Brasil, a adoção de novos padrões para a produção e consumo é urgente, por conta do crescimento exponencial do consumo. Um perfil elaborado pela Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) da Presidência da República revelou que a nova classe média brasileira, formada por 95 milhões de pessoas, tem a maioria feminina (51%) e branca (52%) e é predominantemente adulta, com mais de 25 anos (63%). Os dados são da Pesquisa de Amostra Domiciliar (Pnad), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e foram recompilados pela SAE para estabelecer o perfil dessa classe C, que tem renda familiar entre R$ 1 mil a R$ 4 mil mensais. Os itens de despesas mais comuns são alimentação, habitação, vestuário, higiene e cuidados especiais, assistência à saúde, fumo e serviços pessoais.

Uma das medidas que vêm sendo tomadas pelas empresas para fazer frente ao desafio deste novo consumo é a busca pela ecoeficiência, com a utilização de menos materiais, água e energia por unidade produzida. Segundo Daniela De Fiori, vice-presidente para Assuntos Corporativos e Sustentabilidade do Walmart Brasil, existem iniciativas que são específicas para apoiar esse novo consumidor em suas escolhas, oferecendo informações sobre consumo consciente ou sugestões de como deixar o dia a dia mais sustentável. “Nossos tabloides sempre trazem dicas de reciclagem, aproveitamento de alimentos, economia de energia e água. Na TV Walmart, aquelas que ficam nos caixas das lojas, também inserimos programas que tratam do tema, voltados para o consumidor”, explica. Para ela, é um processo de mudança global. “Precisamos pensar que no Brasil há uma grande parcela de pessoas que ainda não têm acesso ao consumo. A sustentabilidade tem de reforçar o social”, comenta.

Outra área sensível em um processo de transformação do modelo econômico é o mercado financeiro. Ao contrário do que acontece no restante do mundo, onde os bancos são parte importante da crise financeira, no Brasil as instituições têm mantido uma certa distância do problema. Justamente por isso aproveitam essa calmaria para ampliar sua visão de um mercado mais comprometido com questões ambientais e sociais. O poder das instituições financeiras sobre o mercado permite que elas exerçam influência em muitas direções. “Ao inserir a análise de risco socioambiental na concessão de crédito para empresas, estamos estimulando mais negócios que equilibram as três vertentes da sustentabilidade”, explica Maria Luiza Pinto, diretora de Desenvolvimento Sustentável do Grupo Santander. O Banco, segundo a executiva, também atua diretamente com os consumidores, ao estimular o uso correto do crédito, e apoia escolhas de consumos mais conscientes”, explica.

Denise Hills, superintendente de Sustentabilidade do Itaú-Unibanco, acredita que, com a entrada de muita gente no mercado de consumo, o desafio de manter regras de sustentabilidade é maior. “Cuidar do dinheiro, receber, planejar os gastos, ver se falta ou sobra. Saber que crédito não é adicional ao salário, que toda vez que você usa crédito você está alugando um dinheiro a um determinado custo para fazer alguma coisa hoje e vai ter que pagar não só por isso, mas pelo custo do aluguel”, demonstra ela. Parecem exemplos simples, mas, para quem tem pouca familiaridade com o setor financeiro, é muito difícil. Denise conta que o brasileiro não está acostumado a investir. “A relação cultural que temos com o dinheiro é ligada ao trabalho. Se recebemos um dinheiro por um trabalho, esse dinheiro é mais legítimo do que se guardamos um dinheiro e ele render”, explica. Para ela, reverter esta visão estereotipada é um dos grandes desafios da questão financeira no Brasil. Outro dilema é entender o crédito e usá-lo bem.

Um grande objetivo para empresas e organizações sociais é levar as pessoas a mudarem seu comportamento de consumo, dado que, de um modo geral, há uma percepção de que o impacto do consumo de uma única pessoa ou de um pequeno grupo de pessoas é desprezível. Esta percepção desconsidera o fato de que os últimos 50 anos assistiram uma forte evolução na expectativa de vida e um forte crescimento no consumo individual. Com isso, mesmo o consumo de um único indivíduo, ao longo de sua vida, tem um impacto extremamente significativo sobre a sociedade e o meio ambiente. “Em apenas um exemplo isto fica claro: se os recursos naturais usados por um único indivíduo pertencente à classe responsável por 80% do consumo mundial fossem colocados em cilindros de um metro de diâmetro por 1,80 metros de altura, ao longo de 75 anos seriam acumuladas sete pilhas de cilindros cada uma da altura do Empire State Building”, o prédio mais lato de Nova York, explica o presidente do Akatu, Helio Mattar.

O Natal é a data mais importante para o varejo de maneira geral e para grande parte do setor produtivo. “Vendemos os alimentos para a ceia do final do ano e existem muitos produtos sazonais como panetones, frutas secas, aves natalinas, etc. Além disso, há os itens de ‘não alimentos’, como produtos para enfeitar a casa nas festas e também presentes. São brinquedos, eletroeletrônicos, eletrodomésticos”, conta Daniela De Fiori. “Nessa data, ou em qualquer outra, nossas estratégias de sustentabilidade não mudam. Aliás, como elas já fazem parte do dia a dia da companhia e estão em tudo o que fazemos, passa a ser natural que façamos igualmente no Natal ou em qualquer época do ano”, afirma.

Também é tempo de aproveitar as festas de final de ano para estar com aqueles de quem mais se gosta, para compartilhar um texto, ouvir música, refletir sobre o ano que passou, e traçar juntos planos futuros. Se isso ocorre, deixando a emoção fluir, os presentes ficam certamente para segundo plano. Na virada para um novo ano, muita gente costuma fazer promessas de mudanças. “A entrada de um novo ano é uma ótima oportunidade para refletirmos sobre as nossas vidas e buscarmos identificar o que é realmente importante para cada um de nós, buscando então alinhar o nosso consumo com aquilo que concluirmos que nos faz realmente bem e nos traz alegria e realização, afirma Hélio Mattar.

Segundo a vice-presidente do Walmart, “já percebemos mudanças em nossos consumidores, que hoje, graças ao esforço da indústria, encontram em nossas lojas milhares de produtos com algum diferencial sustentável. Hoje há mais possibilidades e as pessoas entendem cada vez melhor como contribuir com o planeta na sua compra mensal”. Mas ela deixa claro que ainda há um longo caminho a percorrer, e tem certeza que a sociedade está aberta a colaborar e cada vez mais entende que é papel de cada um e responsabilidade de todos o mundo que deixaremos para as futuras gerações.

Imagine, por exemplo, desejos para 2012 na linha de “Brincar mais com meus filhos”… “Ler mais romances e poesias”… “Pressionar a prefeitura para que seja melhorada a qualidade do transporte público”… “Fazer passeios de bicicleta”… “Organizar os condôminos do meu prédio para buscar uma cooperativa de coleta seletiva de resíduos e mobilizar a todos para que façam a separação dos resíduos em seus apartamentos”… “Antes de comprar, perguntar sobre a origem da carne, para garantir que não vem de áreas em que a pastagem gerou desmatamento”… “Não comprar nenhum produto pirata”… “Não brigar no trânsito”… “Pedir nota fiscal em todas as minhas compras”… “Planejar o cardápio semanal e fazer a lista de compras que atenda a este planejamento”… “Aderir a marcas, produtos e empresas comprovadamente mais responsáveis do ponto de vista ambiental e social”… “Abandonar o uso de produtos descartáveis e aderir aos retornáveis e duráveis”… “Sempre que possível, trocar os produtos físicos pelos virtuais, os combustíveis fósseis por renováveis, os diluídos pelos concentrados”… Ao mesmo tempo, você estaria dando um presente à sociedade, ao planeta e a você mesmo. Afinal, não vivemos na mesma sociedade e no mesmo planeta dos quais cuidamos?

Mudanças sociais e tecnológicas
Fonte: Instituto Akatu

Algumas mudanças caminham na direção da sustentabilidade sem perda significativa de bem-estar para a sociedade.

1. Gradualmente, substituir os produtos descartáveis ou de obsolescência rápida por produtos mais duráveis. Como exemplo, há uma empresa alemã (Müller) que recentemente aumentou a garantia de seus produtos de linha branca para dez anos, ao mesmo tempo que passou a garantir a atualização tecnológica dos produtos ao longo do tempo. Por trás dessa proposta, está uma mudança radical na plataforma dos produtos, de forma a permitir um upgrade das partes e componentes que, com maior probabilidade, sofrerão inovações ao longo do tempo, para que o produto possa atender ainda melhor a função à qual se destina. Isso implicará também no desenvolvimento de uma rede de assistência técnica mais extensa para poder atender às necessidades de atualização e de conserto dos produtos.

2. Tornar local a produção de alguns itens cuja produção é hoje globalizada, de modo a reduzir o volume de transporte total necessário.

3. Passar do descarte de produtos e embalagens para a sua reutilização e reciclagem.

4. Passar de produtos materiais para formas virtuais de realização das mesmas funções. Um exemplo é o que já ocorre ao comprar música por meio de download ao invés de comprar um CD.

5. Passar do desperdício para o aproveitamento integral de todo e qualquer recurso natural, muito especialmente dos alimentos, onde a perda, nos itens perecíveis, chega a mais de 50% no total e a 30% nos alimentos que entram em uma residência brasileira.

6. Passar do consumo em excesso para o consumo suficiente – como é o caso das toalhas descartáveis em banheiros públicos que, nos últimos anos, foram objeto de campanha dos próprios fabricantes no sentido de “não consumir a terceira folha”.

De outro lado, mudanças tecnológicas deverão ocorrer.

• Passar de produtos diluídos para concentrados (como já acontece hoje com produtos para a lavagem de roupas).

•  Passar de matérias-primas fósseis para renováveis (como aconteceu recentemente com a introdução do plástico verde no mercado brasileiro, produzido a partir da cana-de-açúcar).

• Reduzir a toxicidade das matérias-primas usadas em determinados produtos e, ao mesmo tempo, aumentar a facilidade de sua absorção orgânica pela natureza (como é o caso de detergentes biodegradáveis).

Por meio dessas mudanças, será possível manter o padrão de bem-estar praticamente inalterado, ao mesmo tempo que o uso de recursos naturais em geral é alterado significativamente, fato que é extremamente necessário.

* Dal Marcondes é jornalista e já foi editor de economia e finanças de diversos meios de comunicação. Naná Prado é jornalista e colaboradora da Envolverde.