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Para não ficarmos, todos, cegos e surdos

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Nunca foi tão difícil para a comunicação, tão complexo, retratar a realidade e alguns de seus conflitos. Em certos momentos parecemos imobilizados diante do emaranhado de interesses, do confronto entre eles – sem saber o que propor para a sociedade, para o poder público. O exemplo mais gritante é o dos chamados “rolês”. Que se fará? Não se pode proibir a presença de pessoas ou grupos em espaços abertos ao público. Mas como proteger os estabelecimentos comerciais sem restringir direitos de cidadãos? Vai-se cobrar ingresso? Reduzir a frequência aos lugares e sua rentabilidade? E o poder público, o que ele fará?

Neste momento em que se lembram os 40 anos do incêndio do edifício Joelma, em São Paulo – com os espectadores assistindo “ao vivo”, na hora, pela TV, ao pânico e à morte de muitas das 187 vítimas – pode valer a pena recordar episódio provavelmente já mencionado neste espaço. O autor destas linhas era então chefe da redação do Globo Repórter, da TV Globo, quando foi procurado no dia seguinte a um programa por uma jovem. Ela relatava que, ao ver na televisão um programa (dirigido por Fernando Pacheco Jordão) que relatava com competência a presença de agrotóxicos em muitos dos alimentos mais vendidos no maior centro de abastecimento da capital paulista, seu filho de 8 anos – que já não comia carnes por causa da repulsa adquirida ao ver documentados na TV alguns dos problemas decorrentes desse hábito – passara a recusar-se também a comer vegetais. “O senhor criou o problema com o programa. Agora é obrigação sua dizer o que eu devo fazer”, afirmava a mãe. Pouco era possível, apenas sugerir que levasse o filho a um psicólogo.

Ao relatar o problema ao então diretor de Jornalismo da emissora, Armando Nogueira, ele foi direto. “Eu sei bem do que você está falando. Há poucos dias, quando aconteceu o incêndio do edifício Joelma, em São Paulo (cujo 40% aniversário se lembrou há pouco), também fui procurado por uma mulher. Um filho dela, adolescente, tivera uma parada cardíaca ao ver na televisão as cenas impressionantes: o cinegrafista acompanhara, segundo a segundo, quando uma das vítimas, já na cobertura do edifício, cercada pelo fogo, se atirara no espaço – até documentá-la ao se despedaçar no chão.” Socorrido, o jovem sobreviveu. Mas Armando deu ordem para que já à noite, no Jornal Nacional, só se exibisse a cena com “quadro parado”, sem mostrar o salto e a trajetória da vítima.

Pouco se pensa, na comunicação ou fora, nas possíveis consequências de uma informação sobre o público. E alguns dias depois desse episódio do Joelma a perplexidade estava de volta, com a presença no Globo Repórter de uma delegação de surdos-mudos. Reivindicavam eles que no programa não se “cobrisse” a imagem de entrevistados, deixando deles apenas a voz. Porque com isso os espectadores surdos-mudos perdiam alguns dos poucos momentos em que podiam acompanhar, com leitura labial, o que diziam os entrevistados, mesmo que outras pessoas os mantivessem informados do restante da fala. A reivindicação passou a ser atendida obrigatoriamente. Mais algum tempo, entretanto, compareceu um grupo de cegos. Eles acompanhavam, com a família, a narração dos programas. Mas ficavam sem saber de quem se tratava quando os entrevistados eram identificados apenas por escrito na tela, sem menção do narrador. Passou-se a tornar obrigatória a identificação também pela voz do narrador.

Claro que tudo isso seria superado se houvesse a obrigatoriedade legal, na televisão, de ocupar um pedaço da tela, num dos cantos, com alguém que fizesse a narração labial. Com a obrigação de identificar também na narração quem está falando. Até hoje não há essa obrigação.

Ao comentar esses episódios pouco tempo depois com o então diretor de pesquisas da TV, Homero Icaza Sánchez – extraordinário poeta, amigo e tradutor de Manoel Bandeira -, ele deu a lição inesquecível: “Na televisão, você tem de se lembrar sempre que fala ao mesmo tempo com todos os públicos – homens e mulheres, idosos e crianças, doutores e analfabetos, ricos e pobres; tem der ser atraente e claro para todos, sem ser maçante para alguns Se alguém não entender o que foi dito e parar para perguntar de que se tratava, perderá o fio da narração, poderá desinteressar-se e mudar de canal” (e isso talvez explique parte da perda progressiva de audiência que vem ocorrendo, até chegar aos níveis de hoje).

Não é apenas na TV. Quem pensa nisso quando a comunicação toda está hoje diante de temas extremamente complexos – nacionais e internacionais – que afetam a vida de cada cidadão? Como fazer se cada segundo na televisão ou cada centímetro na comunicação escrita tem alto valor e precisa ser economizado? Como tratar – por exemplo, voltando ao começo deste artigo – a questão dos “rolês”? Como situá-la para os interessados diretos, para os comerciantes e o público habitual de shoppings? Que propor ou exigir ao poder público? Com que recursos? Quais as consequências de cada rumo proposto?

O mesmo raciocínio vale para praticamente tudo de que trata a comunicação. Como cada cidadão se deve comportar, por exemplo, diante do problema cada vez maior e mais urgente das mudanças climáticas (veja-se o noticiário atual sobre redução de chuvas em São Paulo e em vastas regiões, ameaça de racionamento)? Ou, então, que deve fazer a sociedade diante dos dramas da violência, da ineficiência na repressão, da semifalência do Judiciário e do Executivo no sistema penal? Ou, ainda, que faremos diante da paralisação das cidades pelo acúmulo de veículos, motivado pelos estímulos ao transporte individual e pela carência brutal de transporte público?

Seria leviandade acreditar que essas e outras questões se resolverão sem um debate aberto – que só a comunicação pode promover – entre todos os interlocutores. Sem ele estaremos condenados a “rolês” e a protestos violentos e/ou paralisantes.

* Washington Novaes é jornalista.

** Publicado originalmente no site O Estado de S. Paulo.