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As pessoas antes das fronteiras, mas não na Europa

Refugiados chegam à ilha italiana de Lampedusa. Foto: Ilaria Vechi/IPS
Refugiados chegam à ilha italiana de Lampedusa. Foto: Ilaria Vechi/IPS

 

Roma, Itália, 31/7/2014 – As centenas de imigrantes que morrem anualmente tentando entrar por via marítima na Europa geram pedidos da sociedade civil para que os 28 países da União Europeia (UE) mudem as prioridades de sua política migratória. A Agência das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) calcula que 500 imigrantes morreram no Mar Mediterrâneo e cerca de 43 mil foram resgatados pela Marinha italiana desde o início deste ano.

A operação italiana de busca e resgate “Mare Nostrum fez muito por abordar o problema de salvar a vida das pessoas”, segundo Anneliese Baldaccini, diretora de asilo e migração da Anistia Internacional. A Mare Nostrum foi colocada em marcha após a tragédia de outubro de 2013, na qual morreram 366 imigrantes quando o barco em que estavam afundou diante da costa de Lampedusa, uma ilha italiana mais próxima da Tunísia do que da Itália.

A Itália, que preside a UE no atual semestre, investe cerca de nove milhões de euros por mês na iniciativa, e é sua única patrocinadora. Em entrevista à IPS, Baldaccini destacou que essa operação não é sustentável. Por isso, a Anistia Internacional pede que a UE atue de maneira concertada para apoiar a Itália nessas operação”, mas o bloco “se mostra reticente”, afirmou.

“Com sua operação Mare Nostrum, a Itália pressiona para que se dê uma resposta humanitária coletiva”, pontuou Gregory Maniatis, pesquisador do Instituto de Políticas Migratórias e assessor de Peter Sutherland, o representante especial do secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU) para a migração internacional. “O que falta em nível de UE é uma visão comum do problema”, disse à IPS.

“A União Europeia tem de fazer mais para gerar vias legais aos solicitantes de asilo e aos migrantes, mas neste momento se concentra quase exclusivamente no fortalecimento de suas fronteiras”, afirmou Maniatis à IPS. O pesquisador apontou que a UE não trabalha de maneira sustentada “para melhorar o processamento dos asilados a fim de criar um sistema europeu verdadeiramente comum, aumentar sua capacidade de recepção dos refugiados e estabelecer formas para que as pessoas solicitem asilo sem empreender a perigosa travessia do Mediterrâneo”.

Para a Anistia Internacional, existe uma dicotomia entre a “aspiração da UE em promover os direitos humanos e a realidade das violações dos direitos humanos nos Estados membros”. Em suas recomendações à Presidência italiana da UE, a organização afirma que atualmente “as medidas de controle fronteiriço expõem os imigrantes, os refugiados e os solicitantes de asilo a um dano grave. Sua detenção é sistêmica e mais do que excepcional. E a falta de uma agência os torna mais vulneráveis à exploração e ao abuso extremos”, ressaltou.

A Anistia Internacional pediu à Itália, em vista de sua condição de atual Presidência da União Europeia, que “mostre sua liderança e dirija a UE no rumo dos direitos humanos, para colocar as pessoas à frente da política”. A cúpula do Conselho Europeu, realizada nos dias 26 e 27 de junho, acordou pautas gerais para a estratégia europeia de migração e asilo, que “não mudam o statu quo atual e até representam um retrocesso”, segundo Baldaccini. Em geral, “mostram uma falta de compromisso político”, acrescentou.

Baldaccini explicou que a Secretaria do Conselho Europeu atribuiu o fato de não se ter avançado nas políticas migratórias em parte ao crescimento dos partidos de extrema direita nas eleições do Parlamento Europeu de 25 de maio. Em geral, os Estados, e não apenas os partidos de extrema direita, resistem a “mencionar os direitos humanos, já que isso poderia ser visto como uma forma de incentivar mais chegadas” de estrangeiros à Europa, observou.

Muitas organizações pediram à UE que mude sua estratégia migratória. A tragédia de Lampedusa é mais um exemplo na longa série de fatos semelhantes, segundo Elena Crespi, funcionária para a Europa ocidental da Federação Internacional de Direitos Humanos (FIDH), que representa 178 organizações de todo o mundo. “Apesar dos reiterados compromissos com a mudança, as políticas migratórias da UE continuam impulsionadas pela segurança e objetivam reforçar o controle das fronteiras, enquanto dão pouca atenção aos direitos dos imigrantes”, ressaltou.

Crespi mencionou o exemplo da Frontex, a agência europeia para a gestão da cooperação operacional nas fronteiras externas dos Estados membros da UE. A crescente presença da Frontex não se reflete em um número menor de incidentes e nem em maior respeito aos direitos dos imigrantes e solicitantes de asilo, afirmou. Pelo contrário, cresceu o número de denúncias de violações dos direitos humanos na fronteiras externas da UE, acrescentou.

A Frontex rechaçou a recomendação do Defensor do Povo europeu de implantar um mecanismo que permita a investigação das supostas violações. Isso gera dúvidas sobre a compatibilidade das operações dessa agência com os direitos humanos, ressaltou Crespi. Além disso, a Frontex não evita que os imigrantes morram no mar e o controle fronteiriço mais rigoroso faz com que as pessoas sigam vias de entrada na Europa cada vez mais perigosas, acrescentou.

A Itália pretende que a Frontex assuma os custos das operações da Mare Nostrum, segundo Simona Moscarelli, jurista da Organização Internacional para as Migrações, com sede em Roma. Mas para isso será preciso “modificar a missão da Frontex, porque seu mandato não inclui as operações de busca e resgate”, explicou. “A função da Frontex não é salvar vidas, mas prevenir e dissuadir a entrada dos imigrantes na Europa”, pontuou Crespi. Por outro lado, “a grande maioria dos imigrantes que cruza o Mediterrâneo é de cidadãos da Síria e Eritreia, que deveriam ter direito ao asilo”, afirmou Moscarelli.

A Acnur informou que, em 2013, aumentou o número de sírios que chegaram à Europa por mar. No mesmo ano, a Itália resgatou no Mediterrâneo mais de 11.300 cidadãos sírios. “A UE deve modificar sua estratégia migratória e pôr no centro o respeito aos direitos dos imigrantes e dos solicitantes de asilo”, enfatizou Crespi, acrescentando que “alguns passos que podem ser dados na direção adequada são a abertura de novos canais para a imigração regular, melhoria da capacidade de recepção e investigação das violações dos direitos humanos”. Envolverde/IPS