Internacional

“Gerações roubadas” não são um capítulo encerrado na Austrália

Ativista se manifesta durante uma marcha em Brisbane, na Austrália, para deter o ciclo de “gerações roubadas” entre as crianças aborígines. Foto: Silvia Boarini/IPS
Ativista se manifesta durante uma marcha em Brisbane, na Austrália, para deter o ciclo de “gerações roubadas” entre as crianças aborígines. Foto: Silvia Boarini/IPS

Por Silvia Boarini, da IPS – 

Brisbane, Austrália, 7/7/2015 – A cada ano a Austrália comemora o Dia Nacional do Perdão, em lembrança às dezenas de milhares de crianças indígenas que, entre 1890 e 1970, foram tiradas à força de suas famílias pelo Estado e colocadas sob cuidados de famílias ou instituições brancas para que assimilassem a sociedade de colonos.

O Dia do Perdão, 26 de maio, foi instituído em 1998, após a publicação no ano anterior do informe Trazendo-os Para Casa, resultado da primeira consulta nacional que colheu testemunhos de meninos e meninas indígenas “roubados” e criticou as políticas racistas que permitiram a sistemática separação de suas famílias.

O governo se desculpou formalmente por esse “capítulo obscuro” na história da Austrália somente em 2008. “Pela dor e pelo sofrimento dessas gerações roubadas, pedimos perdão”, afirmou o então primeiro-ministro, Kevin Rudd. O chefe de governo acrescentou que se imaginava um futuro em que “o parlamento decida que as injustiças do passado jamais voltem a acontecer”.

Apesar das desculpas, os ativistas indígenas afirmam que o capítulo das “gerações perdidas” não é um fato isolado, nem está encerrado. “A partir das primeiras semanas da invasão inglesa na década de 1780, começaram a levar nossos filhos e a separar nossas famílias. E agora há mais crianças removidas à força do que antes”, afirmou à IPS Sam Watson, dirigente e ativista aborígine.

Um recente informe da Comissão de Produtividade do Governo corrobora a interpretação de Watson. As crianças indígenas mantidas fora de suas famílias chegavam a 5.059 em junho de 2004, e a 14.991 em julho de 2014. Apenas 5% da população australiana menor de 17 anos é indígena, mas, segundo o documento, 35% de todas as crianças retiradas de suas famílias são indígenas.

Mary Moore, fundadora da Comissão de Ética Legislativa, acompanhou muitos casos de remoção de crianças indígenas e não indígenas de suas casas. A Austrália é a “capital mundial do roubo de crianças”, denunciou. Muitos postos de trabalho dependem dessa prática arraigada e são aprovadas leis para legitimá-la, ressaltou. “A remoção e adoção são estratégias” contrárias à natureza, porque “ignoram as consequências danosas para as crianças e são muito mais caras do que apoiar as famílias para que permaneçam unidas”, acrescentou.

As autoridades justificam a remoção alegando “proteção infantil” e devido aos seus entornos de “negligência” e possível “risco”. Mas a minoria indígena, que se destaca na parte inferior da maioria dos índices socioeconômicos, quer saber a quem cabe a negligência e as políticas racistas que contribuíram para a pobreza generalizada e a alta porcentagem de encarceramento e de doença mental que afetam suas comunidades.

Para Auntie Hazel, da organização Avós Contra as Remoções (GMAR), não há diferença entre o que aconteceu no passado e o que ocorre agora. “Se alguém do grupo de mais idade das gerações roubadas e alguém dos mais jovens for ouvido, se verá que a essência do que dizem é a mesma”, afirmou à IPS. “Nunca conheceram sua mãe, nunca conheceram sua avó. Sentem que não pertencem a nenhum lugar. Sentem o mesmo em seu interior”, destacou.

A Aliança Estratégica Nacional Aborígine para Trazer as Crianças para Casa (Nasa) agora se une à GMAR e a outros grupos afins. Em toda a Austrália são realizados protestos, mesas-redondas, marchas e plantões, e cresce rapidamente uma rede de solidariedade internacional. “Todos somos um e lutando pela mesma causa. Só quando os menores puderem nutrir seu espírito interior poderão se converter em aborígines orgulhosos”, argumentou Hazel.

Em última instância, a GMAR busca alcançar a autodeterminação no cuidado e proteção das crianças indígenas e pôr fim ao “poder e controle” que o Estado tem sobre a minoria indígena. Atualmente, muitos indígenas se queixam de que as crianças são retiradas de suas casas com preocupante facilidade, às vezes devido a boatos infundados e sem comprovação. Qualquer um pode ligar para um telefone e anonimamente prejudicar outra pessoa, pontuou Hazel.

Segundo disse, “pode ser que um dia seu filho gaste o dinheiro para o almoço com doces e a professora, que tem a obrigação de denunciá-lo, diz ao Departamento da Comunidade e Serviços Sociais (DOCS) que a criança não tinha dinheiro para a comida. E assim sucessivamente até que haja um caso contra você e você nem sabia”.

Entre outras coisas, a GMAR propõe a criação de um “comitê de especialistas aborígines”, formado por profissionais da saúde, para que trabalhe com as famílias consideradas “em risco” pelo Estado antes de tirarem as crianças de suas casas. Esse comitê teria economizado muita angústia para Albert Hartnett, um dos integrantes da GMAR. Em 2012, as autoridades levaram sua filha de 18 meses, Stella, sem aviso prévio.

“Os funcionários do DOCS, escoltados por policiais, bateram na minha porta uma sexta-feira pela manhã”, recordou, ainda afetado emocionalmente. “Disseram que a menina estava em perigo, e perguntaram: ‘onde está o cachorro?’. Não entendia o que diziam. Não tínhamos cachorro”, acrescentou. Embora não encontrassem nenhum dos “riscos” mencionados em seus documentos, como excremento de cachorro no chão, os funcionaram mesmo assim levaram Stella.

As remoções realizadas às sextas-feiras são uma prática combatida pela GMAR, porque as famílias ficam em desvantagem diante do DOCS e sem apoio durante todo o fim de semana. “Dizem que você não é um pai apto, e é fácil cair em uma espiral descendente”, afirmou Hartnett.

Sem fé no sistema, Hartnett foi às consultas na segunda-feira seguinte e à tarde recebeu um telefonema surpresa do DOCS pedindo uma avaliação de sua casa. “Foi ao contrário. Primeiro levaram a menina e depois vieram inspecionar”, disse esse pai de cinco filhos. Stella foi devolvida à família, mas todos ficaram marcados pela experiência, acrescentou. Envolverde/IPS