Por Antonio Rocha Magalhães* para Agência Eco Nordeste –
Sempre tive uma preocupação muito grande com a questão do desenvolvimento. Eu tinha duas perguntas: primeiro, é possível crescer economicamente? segundo, é possível erradicar a pobreza, assegurando que todos tenham acesso aos frutos do crescimento?
Tem sido uma característica humana, ao longo da história, que as civilizações são divididas entre duas grandes classes. Uma é a dos poucos que se beneficiam, crescem e enriquecem; outra é a dos muitos que permanecem à margem, mas são úteis para fornecer trabalho e soldados. Tradicionalmente, a primeira dessas classes se beneficia com os frutos do desenvolvimento. A segunda, não. Permanece à margem. Já foi chamada de várias coisas, ao longo da história. Proletariado interno, reserva de mercado, povão. São os pobres de cada País.
A questão é: existe o desenvolvimento inclusivo? Um desenvolvimento que inclua todos nos seus benefícios (todos mesmo, inclusive as gerações futuras)?
Podemos imaginar que, no início de tudo, as desigualdades eram mínimas, ou inexistentes. Todos eram igualmente pobres. Todos buscavam coletar ou pescar para satisfazer as necessidades diárias. Nesse processo, as mulheres ficavam com o trabalho que exigia menos força, mas participava ativamente. Com a continuação, elas passaram a ser secundárias, cabendo ao homem as posições sociais mais elevadas.
Com o crescimento, começam as desigualdades. Porque o crescimento, em uma sociedade, não acontece simultaneamente para todas as pessoas. No fim, uma pequena classe se apropria das benesses. Os bens que são da sociedade, que inicialmente eram livres, como a terra, começam a ser apropriados por poucos. Os muitos servem aos poucos. Na história, a questão agrária sempre esteve muito presente. Não há como promover-se inclusão se o sistema agrário é muito concentrado.
Na minha história de trabalho, enfrentei sempre essas questões. Confesso que, durante certo tempo, pensei de forma simplista e mecânica.
Na estratégia de desenvolvimento rural do Nordeste, o problema da erradicação da pobreza seria resolvido, porque cada família receberia o impulso econômico inicial e o acesso aos meios de produção e aos serviços sociais básicos: educação, saúde e saneamento. As coisas não funcionaram como muitos pensávamos. O problema continua existindo. A solução que tínhamos era lógica, mas era imposta de cima para baixo. Não havia sido construída conjuntamente. Não podia dar certo.
Outros acreditavam que, com o crescimento econômico, a demanda derivada de trabalho acabaria por envolver todas as pessoas. Todos teriam renda, não haveria o problema da pobreza. Isso também não funcionou. Com mais razão, isso não funciona em época de grandes transformações tecnológicas, em que há necessidade de cada vez menos mão-de-obra para produzir a mesma coisa. Pior ainda, isso é um objetivo do crescimento, isto é, o aumento da produtividade do trabalho, porque com a ajuda da máquina e agora da inteligência artificial, uma pessoa só produz muito, dispensando a necessidade de mais trabalho.
Nos planos recentes do Nordeste, quando se esperava que o problema do desenvolvimento seria finalmente resolvido, porque havia “vontade política”, imaginava-se que os pobres urbanos receberiam empregos propiciados pela industrialização e os pobres rurais seriam ocupados com a redistribuição da economia agrária, incluindo a reforma agrária, e o processo de colonização de regiões adjacentes na Bahia, sul do Piauí e Maranhão. Em outra época, quando foram criados os programas especiais, esperava-se que eles resolveriam o problema nacional e que os excedentes de população seriam absorvidos ao longo da rodovia Transamazônica, em projetos de colonização na Amazônia. Isso foi mais uma decepção.
Há ainda uma outra questão, que enfrenta a sociedade atual: o crescimento econômico tem limites. Há uma extensiva discussão sobre isso, mas não se pode fugir ao fundamental. Estamos usando as reservas não recuperáveis de petróleo e minérios e estamos usando os recursos renováveis a uma taxa superior à sua capacidade de renovação.
Na verdade, já ultrapassamos esses limites. Em nível global, o maior indicador é o aquecimento da temperatura da Terra, provocado pela emissão de gases provenientes das atividades humanas (queima de petróleo, gás e carvão e mudança de uso da terra, com o desmatamento). Em nível local, também há falta de terra e de outros recursos naturais. Cada vez mais atingimos mais cedo o limite que nos é dado pela capacidade de recuperação dos recursos renováveis da Terra.
Novo Acordo Verde
“O importante na ideia de Green New Deal (Novo Acordo Verde) é que a vida econômica passa a ter o objetivo, não só de oferecer bens, serviços, empregos, inovação e arrecadação de impostos, mas também de neutralizar as emissões de gases efeito estufa, responsáveis pelo aquecimento global, reduzir a erosão da biodiversidade, combater a acidificação dos oceanos, a destruição das geleiras e proteger cada vez mais o capital natural que fornece os serviços ecossistêmicos dos quais todos dependemos”. (TAB, Ricardo Abramovaty, UOL, 8/7/20)
Onde estamos? Sem dúvida, para a humanidade, esta é uma encruzilhada. Eu não estarei aqui para saber o resultado, mas não posso ser otimista. Caminhamos para a derrocada.
No caso do Semiárido do Nordeste brasileiro, as mudanças climáticas trarão mais secas, mais desertificação e mais restrições para a agricultura, a pecuária e a vida em geral. Mas isso poderia ser pelo menos prorrogado ou, até mesmo, evitado, se a humanidade entendesse com clareza o que está acontecendo e entrasse em acordo para o desenvolvimento sustentável. Este, o desenvolvimento sustentável, não deve ser confundido com crescimento econômico.
O desenvolvimento sustentável pode acontecer com crescimento zero ou, até mesmo, com crescimento negativo. Por que, por exemplo, um habitante dos Estados Unidos utiliza tantas vezes mais energia do que um indiano? Ou um africano? Ou um nordestino?
Aí está talvez a maior dificuldade. Como fazer com que os habitantes dos países desenvolvidos aceitem ter um crescimento negativo para que os dos países em desenvolvimento possam ser incluídos? Afinal de contas, se considerarmos tudo o que o mundo já produz e dividirmos pela população total do planeta, concluiríamos que o que produzimos já é suficiente. No entanto, os benefícios não chegam à maioria, que permanece em pobreza e sujeita a mais riscos.
Mas vamos voltar ao caso do Brasil e, especialmente, ao caso do Semiárido.
Papel dos municípios
Tudo deveria começar com o papel dos municípios. Afinal, no território de um município é possível alcançar toda a população. O gestor municipal e os seus principais assessores podem acessar a todos os provedores de serviços de educação, de saúde, de saneamento e de proteção social. Eles podem acessar, também, todas as comunidades e todos os habitantes.
Proponho que o desenvolvimento comece pelos municípios e que o papel dos gestores seja um de mobilização de todos para enfrentar os problemas que aparecerem. Por exemplo, o prefeito pode se tornar um conhecido próximo de cada comerciante de cada bairro ou comunidade. O que eles podem fazer? Alguns podem ser líderes, podem arregimentar outras pessoas. Podem assegurar que a comunidade conviva sempre com práticas adequadas de higiene, pode manter as ruas limpas.
É preciso ajudar as pessoas a mudarem de opinião: afinal, há um tipo de contribuição que não custa recursos, que pode ser feito por cada um. A pobreza, em cada lugar, costuma ser maior do que deveria ser, mesmo só com os meios aí disponíveis.
Tome-se o caso da educação. O gestor municipal pode alcançar cada aluno. Ele pode responsabilizar cada professor, não pelo tempo de aula que ele dedique, mas pelo aprendizado que o aluno demonstre. Em Sobral (CE), essa prática permitiu que o índice de leitura no terceiro ano passasse 45% para 95%. Essa estratégia, com as modificações que forem necessárias em cada lugar, pode ser levada a qualquer outro serviço prestado à comunidade.
Isso significa que o papel do gestor municipal deveria ser diferente. Em vez de buscar investimentos, de buscar recursos externos, de usar todos os recursos garantidos só para manter a máquina administrativa da prefeitura, o prefeito deveria voltar-se para dentro, para mobilizar e transformar as pessoas.
Nesse processo, seria importante identificar as lideranças do local, conhecer as pessoas que podem pensar da mesma forma e que podem ter influência sobre outros. Eles serão agentes da transformação, da melhoria social para todos.
Um prefeito comprometido não vai desistir com a primeira dificuldade. Ele vai insistir, vai tentar outras vezes.
Tome-se o caso de uma comunidade rural, onde existe um certo número de famílias vivendo, de forma agrupada, algumas; ou dispersas, outras. Vale a pena conversar nessa comunidade, para sentir se há alguém que já exerça algum tipo de liderança. O gestor deve tornar-se conhecido, falar com as pessoas, dizer-lhes o nome. Aos poucos, algumas pessoas se destacam pelo papel que exercem, ou podem exercer.
Pode-se, por exemplo, fazer um exercício para explorar oportunidades que possam existir. No extremo, pode ser que não existam oportunidades. Mas sempre haverá alguma. Há ações que podem ser realizadas que não requerem intervenção externa, mas apenas conscientização e mobilização. Por exemplo, a limpeza urbana.
Uma vez, visitando um distrito de Canindé, deparei-me com uma área da comunidade repleta de sacos plásticos. Para limpar essa área, não há necessidade de ajuda de fora. A comunidade pode fazê-lo. O prefeito pode ajudar, pode fazer o dia da limpeza, pode fazer uma festa da comunidade, oferecer café e doces, fazer promoções. E pode conversar com a comunidade para manter a cidade limpa, o que é ainda mais fácil, mas depende da cooperação de todos.
Uma outra área é a de higiene pessoal. Como as pessoas se comportam no dia a dia, como as casas, que continuarão pobres, podem ser mais limpas, como a água pode ser coada ou filtrada, como o ambiente pode ser mantido limpo.
Outras oportunidades podem ser identificadas que requeiram algum apoio de fora, quem sabe da prefeitura. Nesse caso, os servidores da prefeitura devem estar de prontidão, sem muita burocracia. Não se trata de fazer um processo burocrático que precise receber vários carimbos na prefeitura até ser finalmente aprovado por uma autoridade. Requer-se que seja simples.
Há ainda outras oportunidades que exigem um apoio que vai além da prefeitura, que possa passar pelo governo do Estado, que vá até o governo federal ou até uma agência nacional ou internacional. Se a comunidade estiver organizada, ela pode liderar o processo, até que se tenha uma aprovação final. No caso do Estado, é preciso que as autoridades e os servidores estejam de prontidão, que tenham sido treinados para atender a pedidos que venham de prefeituras e comunidades.
Uma vez, nessa mesma comunidade onde estive em Canindé, notei que havia vários agentes públicos, de outros poderes ou de ONGs, que visitavam a comunidade. Havia promotores de turismo, de educação, de saúde, de meio ambiente e assim por diante. Eles, no entanto, nunca se associavam. Vinham em dias diferentes e falavam com pessoas diferentes. Estavam sempre separados e conversavam separadamente com as pessoas. A marca que deixavam era pequena. Por isso, acho que a gestão local precisa se organizar em torno das necessidades de bairros e comunidades.
Acho, portanto, que o município é a célula base do desenvolvimento. Com mobilização e participação de todos, todos os problemas serão resolvidos. Numa pequena cidade, por exemplo, é possível abordar todas as pessoas que estão na rua. Cada um devem ser parte de uma solução para que todos possam viver melhor.
*Antonio Rocha Magalhães – Economista, Ex-Secretário de Planejamento do Ceará
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