Opinião

Preconceito, Cultura, Política e Utopia (VI)

por Samyra Crespo – 

A doce alienação dos 19 anos

No texto anterior, contei do meu primeiro contato com a utopia marxista-leninista, apelidada de comunismo e ponto final. Tive outro, na vida adulta, mais sério e mais consciente, na efervescência das Diretas Já e durante a “distensão lenta e gradual” proposta por Geisel, o quarto General a comandar o país, desde o Golpe de 1964.

Mas estou agora na primeira metade dos anos 70. Professores e estudantes presos, demitidos, sumidos. Censura nos jornais, nas rádios, TV e no teatro. Passeatas e outras manifestações, proibidas. Livros que contivessem qualquer palavra como política e social – como nos algoritmos de hoje, eram sumariamente glosados e confiscados.

Um incidente infeliz apressou meu afastamento da política e me apresentou à doce alienação dos 19 anos.
Meu irmão tinha uma espingarda de chumbo, e costumava caçar num bosque da Chácara Santo Antônio, nosso bairro, onde até pouco tempo atrás funcionava uma reserva da Hípica (entre a chácara santo Antônio e a Granja Julieta). Caçava rolinhas, que eu adorava comer grelhadas. Ali, na divisa, havia outra grande propriedade, pertencente aos padres da Ordem do Verbo Divino, poderosa editora católica. Meu irmão caçula (somos três, um homem e duas mulheres) costumava treinar a mira com latinhas de leite condensado no quintal; foi denunciado por uma vizinha que tinha um filho major, do exército, creio.

Chega um carro de Polícia em casa. Pergunta por meu irmão, confisca a michuruca espingardinha e faz uma “revista” na casa. Chega à garagem e dá uma geral, abre a caixa de livros, vê o mimeógrafo a álcool, felizmente quebrado e empoeirado, num canto. Perguntam de que são os livros, minha mãe responde que do antigo morador da casa. Eles perdem o interesse e conduzem meu irmão – com 16 anos, à delegacia. Dão um susto nele e o liberam.

Isto gerou uma comoção. Minha mãe queria levar os livros do Durán, que nunca mais dera notícias, e jogá-los no Tietê, à noite. Resisti, mas tive que prometer que por “segurança da família ” não ia mais ter contato com gente perigosa e nem me meter em aventura que comprometesse meu futuro. Juro que tentei levar a promessa a sério.
Fora do mundo da política havia outro, pulsante, que chamei de doce alienação.

Muitos namoricos de “mão na mão e coisa na mão, e mão na coisa” e o terror de engravidar como limite. Eram muitos “bailinhos” com música mela-cueca, alternados por festas com luz estroboscópica, o must da época. Amassos no drive-in e incursões noturnas por lugares que iam da inocente sopa de cebola no CEASA, outro must, a lugares duvidosos como a boite Cave, na Consolação onde espremiam-se putas chiques, celebridades e riquinhos libertinos.

Também tinham as drogas e a literatura. Às Portas da Percepção, de Aldous Huxley, e as experiências do antropólogo Castaneda com um velho xamã e o peyote, e toda a literatura niilista beatnik. Easy Rider e Hair nos apresentavam um mundo de contestação palatável ao Regime – que se concentrava em ceifar as lideranças comunistas. E todo mundo era suspeito, até prova em contrário.

Janis Joplin e Bob Dylan tomaram o lugar das músicas de protesto nacional. O protesto em inglês, compreendido por poucos, era tolerado.

Havia também uma enxurrada de literatura mística, mas esta não me atraía, até porque era o momento do “pecado mora ao lado” e não o da crise existencial.

Ainda não tinha sido inaugurado o império da cocaína. Era maconha, comprada na “feira hippie”, comprimidos de “Perventin” misturados ao café ou à coca-cola, chá de cogumelos e lenços empapados de lança perfume – que vinha da Argentina. E muito álcool.

Num carnaval, em Ubatuba, devidamente autorizado e familiar, experimentei no aniversário de alguém uma pastilha de ácido. A euforia, as luzes brilhantes e as cores de uma nitidez de doer marcaram aquela experiência que parecia positiva. A praia era uma passarela macia e e morna, meus amigos rindo, tudo levava a crer que a “viagem” era segura. Mas tive um revertério e passei a ter alucinações aleatórias por dias a fio. Tomei pavor e nunca mais me droguei. Um drinque ou dois para ficar “alegrinha” e nada mais, passou a ser a minha norma. Até hoje, sigo à risca.
Vivi assim essa vida de dissipação e exaltação hormonal por dois anos.

Sem prejuízo dos estudos.

Comecei a namorar rapazes ricos que me levavam ao Mingau (sessão dançante, à tarde) do Clube Paulistano e que ouviam músicas em inglês. Tinham carros tipo banheira – o Galaxy, e um mais sofisticado, e abastado, apareceu na porta da minha casa com um Jaguar.

Ser bonita, inteligente, e ter uma educação liberal abria muitas portas; o coração dos rapazes só ficava em dúvida porque me consideravam “intelectual demais”. Eu escrevia poemas incompreensíveis e lia coisas estranhas. E era “caxias” na escola.

Ainda assim, tinha olhos verdes, corpinho de violão e eu própria já me achava a princesa da sedução. Considerei que namorar e casar com algum daqueles rapazes que cheiravam tão bem, sem problemas financeiros e diversão liberada, podia ser uma excelente carreira. Mas me recuperei dessa maluquice a tempo. A maioria era babaca e só pensava “naquilo”.

A ressaca moral chegou quando um dos meus namoradinhos se suicidou. Não foi por minha causa, e aparentemente não tinha causa. Olhando retrospectivamente, na família dele havia casos de esquizofrenia, um tio considerado maluco, ou coisa assim.

Era rico, estudante da FAU (Faculdade de Arquitetura da USP) e tinha uma bela casa no Pacaembu. Ali sua mãe, um psicóloga muito fora do convencional, organizava sessões de paranormalidade. Convidava pessoas que acreditavam em ETs e discos voadores. Eu mesma fui a uma dessas sessões e vi cinzeiros se moverem por força telepática, e mediuns que se comunicavam com espíritos.

A morte desse jovem de vinte e um anos me prostrou. Experimentei a tristeza de uma perda pela primeira vez; até aquele momento, jamais vira um cadáver. Quando fiquei órfã não fui ao velório nem ao enterro do meu pai. Minha mãe quis poupar a mim e a meus irmãos. O rosto gelado e arroxeado do namorado morto não me saía do pensamento. Procurei o padre que nos orientava nos tempos em que eu ia à missa e comungava.

Ele tinha mudado bastante. Era agora mentor de um grupo de jovens na casa dos 18, 20 anos (alguns aparentavam menos) e me convidou para a leitura do livro “O Cristo do Povo “, escrito em 1968 por Márcio Moreira Alves, o jovem deputado carioca que fizera o tal famoso discurso que levara os militares a decretar o A-I 5.

Foi aí que encontrei a segunda grande utopia da minha vida: o cristianismo social, embalado pelas reformas do Vaticano II (também chamado de aggiornamento), pela nova teologia que vinha da Holanda e pelo engajamento de alas da Igreja católica na luta contra a Ditadura.

… continua no próximo Post.

Samyra Crespo é cientista social, ambientalista e pesquisadora sênior do Museu de Astronomia e Ciências Afins e coordenou durante 20 anos o estudo “O que os Brasileiros pensam do Meio Ambiente”. Foi vice-presidente do Conselho do Greenpeace de 2006-2008.

Este texto faz parte da série que estou escrevendo sobre os anos da minha formação e de como me tornei ambientalista nos anos 90.

(#Envolverde)