Opinião

Preconceito, Cultura, Política e Utopia (VII)

por Samyra Crespo – 

A utopia cristã católica turbinada pela teologia da libertação 

Hoje, sexta feira santa, me dou conta de que a idéia da Páscoa, período de júbilo e celebração que se segue a outro, de pesar, martírio e sacrifícios, permeia as três grandes religiões monoteístas que tiveram suas origens no mundo antigo e atravessaram a modernidade, chegando aos dias nossos dias: o judaísmo, o cristianismo de matriz católica e o islamismo. Nas três religiões você encontra o imaginário da Páscoa: o Pesach judaico; o Ramadã islâmico; a Semana Santa que começa com o domingo de Ramos, passa pela “sexta-feira da Paixão ” e culmina com o domingo de Páscoa. Este hiato de tempo, antes do banquete do júbilo – no caso católico a festa do Cristo redivivo – se dá depois de experimentarmos (mimeticamente, com rituais e representações teatrais) o sofrimento. Período guardado pelos fiéis praticantes com orações, retiros, jejuns e outras dietas específicas, próprias de cada tradição.

Aos vinte anos voltei para este mundo, que me era familiar e do qual não me separei mais. Nem mesmo quando tive nos anos seguintes à morte do jornalista Wladimir Herzog (em 1975) uma reaproximação com o Partido Comunista.

Ser comunista e católica é uma baita contradição. No primeiro pouso temos a crença na alma imortal, nos desígnios da Providência, na força do carisma de Cristo, nos testemunhos dos santos ( a maioria mártires e abnegados), no mandato de Roma e do Papa; no segundo o materialismo histórico: o ser humano como o construtor do seu próprio mundo de injustiça e opressão, podendo também ser o libertador, o que modifica sua própria História.

A utopia cristã cria a paz e a justica na terra pelas mãos dos homens de “boa vontade”.

A utopia marxista estabelece a ordem social e política onde reina a igualdade e a fraternidade, pelas mãos dos revolucionários.

Meu ponto de vista é pessoal, mas também informado. Muitos na minha geração tentaram conciliar estes dois mundos, estas duas utopias. Atuaram em momentos decisivos na história de nosso País com integridade e senso de justiça, arriscando suas vidas. Muito já se escreveu sobre a Igreja Progressista, aquela inspirada pelo Concílio Vaticano II, pelos papas João XXIII e Paulo VI ( cuja encíclica Populorum Progressio – é um marco); aquela que fez a Conferência de Medellín em 68 e soprou os ventos do aggiornamento, inspirando os bispados nacionais a atuarem contra a onda de terror totalitário que se espraiva não só no Brasil, mas como uma onda virótica em toda a America Latina – nos anos 70′.

Muitos que aqui me lêem poderão afirmar, e terão razão, que parte substanciosa da hierarquia, ou seja, da igreja institucional, marchou com Deus e a Propriedade e apoiou a Ditadura. Bispos conservadores e integristas (aqueles que não aceitaram as reformas de Paulo VI, assim como não aceitam as de Francisco hoje em dia) foram braços de omissão e opressão. Ainda estarão certos.

Mas não poderão negar que Dom Helder Câmara existiu; que católicos foram para a luta armada (Ação Popular), que criaram um cordão de solidariedade para ajudar quem estava preso ou precisava sair do País; e que inseriu no movimento popular milhares de padres e freiras, e estudantes seminaristas. Inserção era uma palavra lavrada em ouro nos anos 70 e 80. Significava que mesmo que você não tivesse origem camponesa ou operária; mesmo que você fosse de classe média e criado com leite Nestlé e sua bunda tivesse sido limpa com óleo Johnson, você podia fazer uma opção pelos pobres e pelos oprimidos.

Maldosamente, Nelson Rodrigues (o maior dramaturgo brasileiro de todos os tempos) chamava essa brava gente de “os padres de passeata e as freiras de mini saias”. Uma frase canalha na boca de um gênio.

Mas nem todo católico militante usava batina ou tinha sido ordenado. Eu era uma dos milhares de jovens alinhados com a visão de que era preciso “Ver, Julgar e Agir” – método para atuar no mundo.

O melhor do meu engajamento pessoal nas idéias e ações da Igreja progressista se deu nos anos 80, quando atuei como “assessora” na AEC (associação de escolas católicas) e na CNBB, no setor de educação. Esta militância me levou a viajar pelo Brasil, a me aproximar dos jesuítas em pleno processo de reforma da ordem, e do ISER. O Instituto de Estudos da Religião, ONG carioca de orientação ecumênica, que na época ajudava nos processos de “pastorais participativas” em dioceses progressistas, como os bispados de Volta Redonda, Santo André no ABC, em Caxias com dom Mauro Morelli. Este último, junto com Betinho e o IBASE, criou a política pública da Segurança Alimentar do país – embrião do “bolsa familia”.

O ISER foi fundado por protestantes progressistas e nos seus primórdios a figura de proa era o teólogo e pensador Rubem Alves. Atraiu um grupo de acadêmicos que estudavam ou queriam conciliar “fé e política”. Com o tempo atraiu os católicos e outras denominações.

No ISER, onde fui de pesquisadora, militante chegando a dirigente, vivi meu melhor capítulo nesse abraço afetivo e espiritual que dei a esta visão de mundo.

Nela, ser católico não é amofinar-se em rituais introspectivos que celebram o Cristo na Cruz. Nela, o Cristo libertador e pleno em palavras e ação, cria comunidades e inspira a resistência contra o opressor. Nesta visão, Cristo empodera. E age no mundo real.

Mas com este parêntesis, próprio do meu estado nesta sexta feira da Paixão, em luto profundo pelos mais de 320 mil brasileiros mortos na Pandemia, pulei a efervescência social e política dos anos 70.

Voltarei a ela no próximo texto.

E como nem só de política vive o homem, ou a mulher, nesta década tão marcante, eu entrei para a universidade, casei, tive meu primeiro filho.

Casei de “véu e grinalda ” na capela São Pedro e São Paulo, no Morumbi, com um publicitário que conheci no meu primeiro emprego de carteira assinada: uma agência de propaganda pequena, brasileira, onde de secretária passei à “assistente de redação “.

Escrevi textos para convencer os brasileiros de que “moderno” era adotar o coador de papel Melitta e abandonar o velho, de flanela. O Brasil entrava no mundo dos “descartáveis ” e descobria a “sociedade de consumo”.

Casei grávida e vomitava tanto, antes do casório, que o meu vestido de noiva tinha o tamanho de um vestido de primeira comunhão. Eu passava mal, emagreci e me deprimi. Casei como se estivesse indo para o cadafalso.

Um pouco antes do casamento, e de engravidar, fui trabalhar nos Diários Associados. Ali encontrei uma outra turma de aloprados e engajados na luta contra a Ditadura. Ali vi nascer e crescer a Frente política, a união dos diferentes – que tanto buscamos agora, novamente, e é como se não tivéssemos aprendido nada da experiência histórica – para derrubar o Regime instalado em 1964.

… continua no próximo Post.

Samyra Crespo é cientista social, ambientalista e pesquisadora sênior do Museu de Astronomia e Ciências Afins e coordenou durante 20 anos o estudo “O que os Brasileiros pensam do Meio Ambiente”. Foi vice-presidente do Conselho do Greenpeace de 2006-2008.

Este texto faz parte da série que estou escrevendo sobre os anos da minha formação e de como me tornei ambientalista nos anos 90.

 

(#Envolverde)