Opinião

Preconceito, Cultura, Política e Utopia (VIII)

por Samyra Crespo – 

Cultura e desenvolvimento intelectual   

O fato que mais marcou a minha juventude e entrada na vida adulta, nos anos que vão da segunda metade dos anos 60 à primeira metade dos anos 70, era a falta de privacidade.

Isso mesmo, e vou demonstrar nessas poucas linhas, como ela afeta o desenvolvimento intelectual dos indivíduos e mesmo de uma geração. Pensar reflexivamente exige tempo e solidão. E acesso regular aos bens culturais.

Na minha casa, de apenas dois quartos, espremiam-se nós, três irmãos. Duas irmãs dividindo um beliche e um irmão com uma cama para si. Numa casa assim, embora tivesse quintal, garagem e um pequeno jardim, havia apenas um banheiro com banho – para toda a família. Pensar no chuveiro – nem pensar!!! Os banhos eram cronometrados. Uma pia singela ficava na copa para a lavagem das mãos. Um pequeno vaso sanitário no que seria o quarto de empregada era utilizado para complementar o banheiro principal. Ninguém tinha um bem só para si. Compartilhávamos brinquedos, roupas, livros.

A televisão, única e compartilhada. O aparelho de som, vitrola ou “som” (como chamamos mais tarde) era de uso de todos. O gosto determinado pelos pais.

Estudar e fazer a lição de casa era sempre na copa, acompanhada do burburinho da casa toda, incluindo cães e gatos, e vizinhança – nem sempre silenciosa.

Num ambiente assim, a biblioteca é um paraíso – e nem precisa citar Borges como referência.

Ali onde eu ia ler e estudar, não se podia conversar e em meio ao silêncio era possível se concentrar; e também ter acesso a livros caros, em outras línguas.

Na biblioteca Mário de Andrade que frequentei, antes e depois de entrar para a faculdade, era comum ver pessoas que apareciam apenas para ler os jornais do dia. Outros, na hora do almoço, vinham dos escritórios do entorno – para folhear uma revista ou cochilar.

Quando entrei na USP, descobri outras bibliotecas, e parte do prazer de estar cursando a universidade era poder estar em vários desses templos de silêncio e leitura.

A vantagem das bibliotecas na universidade era não serem solenes e algumas com abundante luz natural, alem da vista do Campus; nos anos 70 a Cidade Universitária era um imenso descampado, com prédios em construção e cursos instalados em galpões de madeira. Mas o prédio da História, minha faculdade era amplo e modernoso com vãos maravilhosos e salas que lembram os edifícios da Esplanada dos Ministérios em Brasília: apertadas, quentes no verão e frias no inverno. Maravilhas da arquitetura brasileira. A biblioteca ficava no térreo, de lage e concreto e luz artificial, mesmo durante o dia. Resultado: a troca de lâmpadas não era regular e muitas, defeituosas, piscavam. Migrei para as bibliotecas da FAU e da Politécnica, bem iluminadas.

Ali passei todas as minhas horas vagas, lendo, anotando, pensando e vendo como a pirâmide social se reproduzia bem diante dos meus olhos naqueles espaços. Por exemplo, durante uma década vi os alunos judeus serem substituídos por asiáticos na Poli (engenharias) e os riquinhos se divertirem à larga na FAU (arquitetura). O restante da classe média se apertando entre os cursos de economia e Administração; e um bando de quase operários nos cursos noturnos da Geografia, História e Ciências Sociais. Para estes ultimos, tornar-se “professor” era o auge.

Mas voltando ao fio da meada, esse mundo controlado, compartilhado da casa fazia com que todo mundo quisesse ter seu próprio espaço e precipitava os casamentos (liberdade para trepar e pintar sua própria sala de amarelo mamão).

Você não podia ler um livro sem que a família soubesse, daí o habito de encadernar com papel de presente ou folhas da Revista Manchete o livro erótico ou revolucionário. Esconder “catecismo” (os da minha geração vão entender) debaixo do colchão.

Se você saísse de casa, era para outro coletivo e às vezes pior: uma república onde a disputa por privacidade ocorria sem nenhum afeto, de forma quase selvagem: uns avançando sobre os bens dos outros.

Hoje os jovens ganham cama de casal, dormem com as namoradas em casa, têm sua TV, computador e smartphone. Um mundo impensável para a minha geração. Tínhamos “roupa de sair” e de ficar em casa. Três a quatro pares de sapato, incluindo um conga para ginástica, um kichute para os meninos, e um All Star para tirar onda. Jeans era artigo de luxo e chamados de “calças Lee”. Esquerdistas mais radicais recusavam o seu uso – por significarem “americanização “. Os EUA eram demonizados por terem ajudado os Golpistas.

Assim, o desenvolvimento intelectual dependia de tempo (não trabalhar demais), de privacidade (que não tínhamos), e de acesso a livros (caros), dominar um idioma estrangeiro (éramos a maioria monoglota), frequentar teatro e cinema.

Por isso, entrar para a universidade era para mim mais do que tomar o trem da mobilidade social – bastante desejável – ou conseguir um bom emprego futuro. Era o passaporte para o mundo cultural sem limites, a interação social e intelectual com quem você imagina que vá ter saraus intermináveis e desafios intelectuais apaixonantes. Meus professores, naquele tempo da “torre de marfim”, eram semideuses, respeitados, temidos ou adorados. As frases em latim nos faziam suspirar e leituras de originais um quase orgasmo.

Os alunos não iam às aulas de havaiana nem falavam ao celular, of course, muito menos saíam ostensivamente no meio de uma palestra. Guardávamos lugar para ouvir os mestres mais populares. Disputávamos sua atenção ou mentoria.

Um ambiente ideal para formar uma consciência crítica?

Sim e não.

Mas antes de explorar este ponto, quero dizer que ter um ambiente de trabalho estimulante também faz muita diferença. Quando penso na minha sucessão de empregos, até começo a acreditar em sorte e destino: biblioteca da escola no ensino médio; redação numa agência de propaganda; jornal de prestígio (os Diários competiam com o Estadão e a Folha neste período); escolas secundárias católicas de elite, como professora. Isso, somente entre 1967 e 1977.

Sobre a “consciência crítica ” e o engajamento político: trabalhar no meio jornalístico era um caldo de cultura diverso e fascinante. Quando você é jovem, rapidamente você se apaixona por quem é atrevido e “fora da curva”. Também elege com igual rapidez seus adversários. Por isso o maniqueísmo floresce com facilidade em sociedades jovens, e éramos assim nestes anos de “país do futuro”. Ler o Estadão ou a Folha definia um perfil. Ter lido ou ter em casa a revista Realidade também. Mais tarde chegaram os tablóides: Pasquim, Opinião; Movimento. Sem falar nos clandestinos.

Então se você tinha por volta de 20 anos, só tinha três habitats ideológicos para você se situar, ou escolher: o alienado, do sexo, drogas e rocken’roll – ou alguma seita religiosa tipo Hare krishna; o “operário padrão ” em que você ajudava a família, trabalhando desde os 14 anos, cursando escolas técnicas apolíticas e morando nos subúrbios com mulher e filhos; o das universidades direitistas com o Mackenzie na cabeça: e o das universidades públicas, com os cursos de filosofia, história e ciências sociais na liderança; nichos dessa mesma linha na ECA e na faculdade Cásper Líbero, que cheguei a frequentar por curto período. Ah, e havia as Católicas (notadamente a PUC) e metodistas, divididas entre estes grupos. Grosso modo era isto. Ver-se como de direita ou esquerda implicava habitar algum destes territórios.

E a partir de meados dos anos 70 – ou você estava contra ou a favor da Ditadura Militar. Não tinha coluna do meio.

No próximo texto vou explorar melhor o tema da consciência crítica e mostrar porque só uma união, uma frente pode derrotar um regime tirânico – regime este que só prospera suprimindo liberdades e impondo sua própria ideologia ao conjunto da nação. Muito didático para pensar os dias que correm.

… continua no próximo Post.

Samyra Crespo é cientista social, ambientalista e pesquisadora sênior do Museu de Astronomia e Ciências Afins e coordenou durante 20 anos o estudo “O que os Brasileiros pensam do Meio Ambiente”. Foi vice-presidente do Conselho do Greenpeace de 2006-2008.

Este texto faz parte da série que estou escrevendo sobre os anos da minha formação e de como me tornei ambientalista nos anos 90.