Opinião

Preconceito, Cultura, Política e Utopias (XVI)

por Samyra Crespo – 

Perdas e danos.

Sempre me considerei uma pessoa com boa estrela. Tive sucesso na minha carreira se definimos sucesso como fazer algo de que se gosta, ser apreciado e sentir que o que faz é relevante, contribui.

Hoje vejo cursos para executivos sobre “carreira com propósito”; na minha geração todos tínhamos propósitos: melhorar o mundo, corrigir injustiças, e até os rebeldes tinham causa. Ninguém assava pão integral para ser feliz, se o fazia era para marcar posição, ser antissistema. Alguns se drogaram, beberam até morrer, sei lá que desilusões tiveram. Não julgo o desespero de ninguém. Outros se retiraram como atores que resolvem sair de cena antes que o público lhes notem a falta de talento ou o cansaço. Mas no atacado fomos engajados e acreditamos que mudanças são necessárias.

Vivi uma vida intensa com muitas alegrias, pois nem só de empolgação política vivemos. Alegrias fúteis como tomar um bom vinho e comer uma boa refeição. Alegrias produtivas como aquela que resulta de viagens e conhecimento de outras culturas.

Acho que foi Eduardo Galeano, escritor uruguaio muito conhecido por seu livro – manifesto “As Veias Abertas da AL” – onde denuncia a lógica sanguessuga do imperialismo – quem disse: “A memória guarda o que importa; ela sabe mais de mim do que eu mesmo. Ela lembra o que vale a pena”.

Assim, quando puxamos os fios do novelo da nossa vida ficam para trás as centenas de livros que lemos, os discos que ouvimos, as paisagens que visitamos, reais e imaginárias. Esquecemos quem nos ensinou a beijar pois é o último beijo, o que demos ou recebemos ontem o que importa. O melhor amor está conosco agora, pois se aprendi duas coisas na vida é que paixão e amor não conhecem justiça: está numa outra ordem de coisas – talvez no campo da psicologia profunda.

Roberto Anderson, professor universitário e político, aqui do Rio, escreveu uma crônica dizendo que as estantes de livros de nossa biblioteca são como camadas geológicas dos nossos interesses. Concordo com ele e posso ver as minhas utopias do passado nelas: os livros sobre Gramsci e Togliatti, a biografia de Trotsky; a biografia de Santo Agostinho e uma coleção patrística de História da Igreja Católica; March Bloch e todos os teóricos da ciência da História; Mircea Eliade com o seu Tratado de história comparativa das Religiões; os livros de história da ciência com destaque para Carl Sagan, Stephen Jay Gould e Poinkaré ; Lovelock, Walden e Thoreau na coleção que cresceu nos anos 90, com minha imersão no universo ambientalista.

Citei dez livros? E os outros 2.500 que estão ali como testemunhos da minha formação? Sem falar da literatura, dos poemas que me fizeram chorar.

O que lembramos é o resumo do resumo.

E neste resumo, também tem o aprendizado da dor.

Perdi amigos por mal entendidos ou porque a vida levou cada um para domínios diferentes.

Perdi amores e o mais doído foi o fim do meu segundo casamento no início da década de 2000.

Nunca tinha tido uma desilusão amorosa de verdade, achava que era imune. Fiquei um caco, deprimi e achei que nunca mais ia ser feliz. Fim de casamento com traição e drama. Tudo igual a milhares de relatos. Mas quando acontece com a gente, ai… parece que somos os únicos no universo a lidar com aquela dor.

Um amigo inglês, poeta e já falecido, andava atormentado por amores infelizes e problemas financeiros. Foi consultar-se com um “preto velho num terreiro de umbanda. Começou dizendo que tinha chegado ao “fundo do poço”. O velho cachimbou, olhou meu amigo e disse: “o poço não tem fundo. Nada é tão ruim que não possa piorar “. Meu amigo que buscava alívio saiu de lá indignado.

Lembro-me perfeitamente desta máxima porque ainda lambia as feridas do casamento desfeito quando meu filho mais novo, com 24 anos, morreu num acidente de automóvel numa curva maldita da Lagoa Rodrigo de Freitas. Chovia, derrapou, bateu numa árvore.

Usei vestido branco no enterro porque ele detestava me ver de preto.

Encontrei forças para consolar seus amigos, namorada, o pai alquebrado, o irmão sem palavras. Fortaleci minha fé – pois acredito na alma imortal.

Durante os primeiros cinco anos da década de 2000 eu comi sem olfato e sem paladar. Eu vivi como se a alegria tivesse partido para sempre. Mergulhei no trabalho, reencontrei objetivos e fui com a roupa do corpo para Brasília, assumir, quando convidada, o cargo de secretária nacional de “cidadania ambiental” e relações institucionais. O Ministro era Carlos Minc, o presidente era Lula. Marina acabara de deixar a pasta batendo no Governo.

Mas antes de falar de Brasília e de minha experiência na esfera federal, irei falar dos “gloriosos anos 90′” que colocaram meio ambiente na pauta política nacional.

… continua no próximo Post.

Samyra Crespo é cientista social, ambientalista e pesquisadora sênior do Museu de Astronomia e Ciências Afins e coordenou durante 20 anos o estudo “O que os Brasileiros pensam do Meio Ambiente”. Foi vice-presidente do Conselho do Greenpeace de 2006-2008.

Este texto faz parte da série que estou escrevendo sobre os anos da minha formação e de como me tornei ambientalista nos anos 90.

(#Envolverde)