ODS15

Projeto fortalece proteção territorial de Terras Indígenas do povo Kayapó-Mẽbêngôkre

WWF-Brasil doou equipamentos e recursos para aprimorar o trabalho nas bases de vigilância e  monitoramento territorial mantidas em duas TIs pela Associação Floresta Protegida

O bloco contíguo de Terras Indígenas (TI) do povo Kayapó-Mẽbêngôkre, que inclui as TIs MKayapó e Menkragnoti, localizadas no sul do Pará, na região do “Arco do Desmatamento”, formam importante barreira contra a devastação da floresta amazônica em seu limite sudeste. Mas seus habitantes têm sofrido há décadas com a pressão de invasores – em geral madeireiros, garimpeiros e pescadores ilegais. Um projeto do WWF-Brasil, em parceria com a Associação Floresta Protegida (AFP), está contribuindo para fortalecer a capacidade de monitoramento e vigilância territorial dessas duas importantes TIs. 

Cerca de 4,5 mil pessoas vivem na TI Kayapó, que tem 3,3 milhões de hectares, e pouco mais de 1,2 mil habitam a TI Menkragnoti, que tem quase 5 milhões de hectares. Em ambas, a maior parte dos moradores pertence ao povo Kayapó – ou Mbêngôkre, como eles se autodenominam –, além de, possivelmente, alguns grupos de indígenas isolados.

De acordo com Osvaldo Barassi Gajardo, especialista em conservação e líder do núcleo de respostas emergenciais do WWF-Brasil, “existe um contexto de muitas pressões e ameaças de atividades predatórias, como garimpo, pesca ilegal e extração de madeira naquela região. O objetivo do projeto é fortalecer as ações de proteção territorial por meio de apoio à estruturação e funcionamento das bases de vigilância nessas duas TIs”. Há três bases de vigilância apoiadas pela AFP localizadas estrategicamente nas TIs Kayapó e Menkragnoti, em locais de acesso a estes territórios nos rios Xingu, Riozinho e Iriri.

Fortalecer as estratégias de monitoramento local e remoto de atividades ilegais é fundamental para que os próprios indígenas possam coletar evidências em campo, a fim de subsidiar a elaboração de relatórios, de modo que possam encaminhar denúncias qualificadas aos órgãos competentes, salienta Gajardo.

“A ideia é que o projeto garanta o funcionamento das bases de vigilância e a manutenção de equipes de proteção territorial. Demos esse apoio por meio de doação de equipamentos, além de recursos para alimentação, diárias a indígenas e combustível que possibilitaram a ação das equipes”, explica.

Entre os equipamentos cuja compra foi prevista no projeto estão 3 GPS, um tablet, um computador portátil, dois motores de popa de 40 HP para os barcos dos indígenas e quatro motores de popa do tipo rabeta, que são menores, apropriados para períodos em que os rios estão mais rasos.  

Segundo Gajardo, além da doação de equipamentos, o projeto está ajudando a aperfeiçoar um sistema de coleta e sistematização de dados das bases de vigilância. Ele explica que está sendo elaborada e testada uma metodologia específica para o desenvolvimento de um aplicativo de coleta de dados nessas bases. 

“Esses dados, em conjunto com sistemas de informação geográfica, permitirão acompanhar a efetividade do trabalho de monitoramento ao longo do tempo. Assim, além de garantir o funcionamento das bases, o projeto visa aperfeiçoar sistemas de coleta de dados e informação, fazer análise e tomadas de decisão mais qualificadas.”

Uma das mais importantes da região, a liderança O-é Kaiapó Paiakan, da aldeia Krenhyedjá, na TI Kayapó, explica que o monitoramento territorial tem uma importância tão grande para os povos indígenas que pode ser considerada uma parte da cultura deles. 

“Todos os indígenas já nascem com esse objetivo na vida: lutar pela vida, pelo território e pelo seu povo. Faz parte da nossa tradição os guerreiros irem até os limites da TI, em expedições a pé ou de barco, para monitorar os locais e mapear as ameaças”, conta O-é.

Há vários anos, de acordo com ela, essa tradição de vigilância conta com o apoio da AFP – e, recentemente, teve um impulso a mais, graças aos equipamentos doados e ao uso da tecnologia. “Nosso território é bastante extenso e a AFP ajuda a fazermos esse trabalho de monitoramento do nosso próprio território. A tecnologia e esses recursos para as expedições vêm como um importante complemento para esse trabalho”, diz.

A estruturação das bases de vigilância e a realização das expedições permite a presença constante dos indígenas em áreas sensíveis, o que é um fator dissuasivo para os invasores.

“Só o fato de estarmos ocupando o espaço já garante alguma proteção. Como nossa área é muito grande e temos grande pressão externa, esses projetos são fundamentais. É importante estarmos capacitados e podermos agregar novas técnicas ao procedimento que já fazemos para proteção do território”, frisa.

De acordo com Igor Ferreira, assessor técnico da AFP, a associação – que é uma organização indígena do povo Kayapó-Mbêngôkre – atua na região sul do Pará, nas TIs Kayapó, Menkragnoti e Las Casas, há cerca de 20 anos, mas desde 2016 foi preciso implementar uma nova estratégia de monitoramento territorial, por conta do aumento exponencial das pressões de invasores.

“Um dos pilares dessa nova estratégia é o funcionamento das bases de vigilância em pontos de acesso estratégicos. Nelas, atuam equipes indígenas, com acompanhamento de equipes não-indígenas para assessoramento na parte logística e para estabelecer a comunicação da base com a cidade, onde está a coordenação”, explica Igor.

A AFP é uma organização indígena e toda sua diretoria e coordenação é composta por indígenas Kaiapó das aldeias associadas, com exceção de alguns assessores não-indígenas, segundo Igor, que coordena os cursos de formação de jovens para monitoramento e gestão territorial.

“No projeto, o WWF-Brasil entrou como um parceiro capaz de complementar essas estratégias que já vinham sendo adotadas e contribuiu de maneira muito importante para equiparmos as bases. Conseguimos, por exemplo, comprar motores para as expedições fluviais. O mais importante é que esses equipamentos poderão ser utilizados por vários anos. Também conseguimos garantir o funcionamento das bases por vários meses, com os recursos para pagamento dos indígenas”, diz.

De acordo com Igor, as equipes indígenas das aldeias próximas as bases, mas localizadas no interior do território, revezam-se para operar as bases e recebem um pagamento pelo serviço: “Vemos isso como uma forma de pagamento pelos serviços ambientais que eles prestam. Assim, além de proteger o território, nossa ação também permite gerar uma renda para as comunidades que vivem ali.”

Ele explica que, dentro das TIs da região, há aldeias que historicamente tiveram contato prévio com o garimpo, sofrendo um assédio constante até que se envolvessem na atividade. “Isso fragiliza muito o território. A geração de renda também é importante para reduzir o assédio e incentivar as comunidades que estão ali segurando o avanço do garimpo, de forma que possam fortalecer o trabalho de monitoramento que estão fazendo.”

Na TI Kayapó e nos territórios vizinhos, a governança ambiental é historicamente muito fraca, destaca Igor. Ele explica que as pressões de invasores existem desde a década de 1970, mas foram aumentando com o passar dos anos. A partir de 2016, essa pressão explodiu, crescendo ainda mais a partir de 2019, quando teve início a atual gestão federal.

“Não apenas o ritmo das invasões está aumentando, mas o discurso favorável à exploração das terras indígenas está sendo legitimado, ‘empoderando’ os garimpeiros. Com isso, a pressão de cooptação de indígenas também está cada vez maior. A sensação de impunidade é cada vez maior e os conflitos também estão cada vez mais frequentes”, diz Igor.

Sob liderança de uma mulher, povo Kayapó enfrenta seus maiores desafios

O-é Kaiapó Paiakan, filha de lendário líder do movimento indígena, foi proclamada cacica de sua aldeia em maio de 2021 e é agora a principal liderança encarregada de proteger o território de seu povo

Na cultura Kayapó-Mbêngôkre, a liderança é tradicionalmente transmitida conforme a hierarquia da família, numa cerimônia em que o posto de cacique é passado para o neto mais velho – de preferência um homem. Em 2021, porém, o povo Kayapó-Mbêngôkre escolheu uma jovem mulher para assumir o posto máximo de liderança: a assistente social O-é Kaiapó Paiakan, de 37 anos.

O-é vem de uma reconhecida linhagem de lideranças. A cacica é uma das filhas do lendário cacique Paulinho Paiakan, um dos pioneiros do movimento indígena no Brasil, que morreu em 2020, vítima da Covid-19. Ele ficou conhecido por sua luta pela inclusão dos direitos indígenas na Constituição Federal de 1988, pela demarcação da Terra Indígena Kayapó, obtida em 1991, e contra o projeto da Hidrelétrica de Belo Monte.

“Meu pai fez esse caminho e com ele aprendi que lutar por nosso território e por nosso povo é uma condição para a nossa própria existência como indígenas. Tradicionalmente, a linhagem de liderança é passada para os filhos homens, mas na família do meu pai são só mulheres e eu acabei assumindo essa tarefa”, diz O-é. 

Na cerimônia realizada no fim de maio de 2021, O-é tomou posse não apenas como a nova cacica da aldeia Krenhyedjá, como também de líder de todo o povo Kayapó-Mbêngôkre. Ela recebeu com orgulho a aprovação de outras lideranças históricas do seu povo, como os caciques Raoni Metuktire e Megaron Txucarramãe.

“O cacique Raoni, assim como o cacique Megaron não puderam estar presentes, mas enviaram um vídeo apoiando e incentivando. Essa aprovação é uma novidade. Acredito que receber o apoio de uma liderança da idade do cacique Raoni já pode ser considerado uma revolução, porque ele vem de uma tradição que não abria espaço para as mulheres”, afirma a cacica.

Segundo O-é, esse empoderamento feminino entre os indígenas teve também grande contribuição de Paulinho Paiakan, que, mesmo sob protestos de parentes mais velhos, sempre incentivou que ela e as irmãs estudassem e acompanhassem as discussões das lideranças. O-é se formou em serviço social, em 2020, pela Universidade do Norte do Paraná. Suas irmãs são formadas em direito e biomedicina. Todas estudaram inglês e sempre participaram do movimento indígena.  

“Ser formada é algo que ajuda bastante. Se não tivéssemos contato com a cultura não-indígena, nossa própria cultura nos bastaria. Mas somos submetidos a muitas interferências externas à nossa cultura. Com o estudo, temos melhor condição para fazermos essa mediação com o mundo não-indígena”, declara.

Hoje, O-é acredita que o fato de ser formada e saber interagir com a cultura não-indígena também deu a ela credibilidade junto ao seu próprio povo, consolidando sua posição de liderança. “Meu pai sempre nos disse que, por não sermos homens, ele não poderia nos dar a orientação que os líderes homens recebem, por isso o estudo seria a nossa principal arma na luta pelos direitos indígenas. De fato, é uma ferramenta que ninguém nunca mais vai tirar de nós.”

Os desafios a partir de agora são imensos, de acordo com O-é, mas ela está confiante na articulação de lideranças que se fortalece cada vez mais, com crescente participação das mulheres. 

“Além das pressões dos invasores, nosso território também sofre pressões do governo, que tenta convencer nossos parentes a ceder nossos recursos naturais em troca de objetos e modos de vida não-indígenas. Isso nos coloca em um dos momentos mais desafiadores para o povo Kayapó-Mbêngôkre“, afirma. 

A proteção das Terras Indígenas onde vivem os Kayapó depende hoje da conscientização, segundo O-é. “Tentamos mostrar aos parentes que, se trocarem sua terra por vantagens instantâneas, vão acabar sem nada: sem território e sem identidade. Como meu pai foi uma referência de liderança no movimento indígena, é a memória dele que vou levar adiante agora que essa liderança está comigo”, declara O-é.

Sobre o WWF-Brasil

O WWF-Brasil é uma ONG brasileira que há 25 anos atua coletivamente com parceiros da sociedade civil, academia, governos e empresas em todo país para combater a degradação socioambiental e defender a vida das pessoas e da natureza. Estamos conectados numa rede interdependente que busca soluções urgentes para a emergência climática.

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