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Qual é a importância do estado nas economias mundiais?

Falar mal dos governos parece ser um consenso planetário, mas precisamos cada vez mais deles para aumentar a produtividade sistêmica dos países.

Ladislau

Este artigo foi editado a partir do capítulo 4 do livro “Os Estranhos Caminhos do Nosso Dinheiro”, de autoria do professor Ladislau Dowbor

A alocação de recursos é feita por intermediários, sejam eles governo, bancos, seguradoras, fundos de pensão, ou os gigantes planetários que chamamos de investidores institucionais. Todas essas instituições recolhem recursos com diversas justificativas. Mas são intermediários, ou seja, trabalham com dinheiro que é do público, e deveriam destinar os recursos a atividades fins. Não se justificam em si, por sobreviverem ou enriquecerem, e sim se as suas atividades contribuem para uma economia que funcione melhor. Não há razão para que cobremos produtividade dos recursos que confiamos ao governo, e que não cobremos a produtividade do dinheiro que confiamos ao banco.

O governo, principal intermediário, aloca os recursos segundo um orçamento discutido no parlamento e aprovado em lei. Fato importante: o governo tem de assegurar a captação dos recursos que vai investir. A política fiscal (fazenda) e a aplicação (planejamento) têm de estar casados na peça orçamentária. No conjunto do planeta, os governos são os maiores gestores de recursos, e quanto mais rico o país, maior é a participação do governo nesta mediação. Isto tem lógica, pois quanto mais desenvolvido o país, maior é a proporção de consumo coletivo relativamente ao que sai do bolso de cada cidadão.

A tabela abaixo é interessante, pois mostra esta correlação rigorosa entre o nível de desenvolvimento e a participação do setor público. Nos países de renda baixa, a parte do PIB que cabe ao governo central é de 17,7% , elevando-se numa progressão regular à medida que chegamos aos países de alta renda. (1)

Falar mal dos governos parece ser um consenso planetário, mas precisamos cada vez mais deles, inclusive nos países desenvolvidos que hoje pagam o preço do vale-tudo financeiro desregulamentado e das privatizações irresponsáveis.

Note-se que se trata, na tabela acima, dos gastos do governo central apenas, os gastos públicos totais são bem mais amplos. “Há uma década os gastos do governo americano eram de 34,3% do PIB, comparados com 48.2% na zona europeia, uma distância de 14 pontos; em 2010, o gasto americano esperado é de 39,9% do PIB comparado com 47,1%, uma distância de menos de oito pontos percentuais”(2). Lembremos que a cifra equivalente no Brasil é de 35%. Na Suécia, que ninguém vai acusar de ser mal gerida, é da ordem de 60%. E são cifras anteriores à intervenção do Estado para salvar os bancos.

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Seja qual for a política adotada, portanto, é essencial assegurar a qualidade da alocação de recursos por parte do maior ator, o governo. Essa correlação entre o nível de prosperidade do país e a participação do setor público não é misteriosa: simplesmente, o mundo está mudando. Antigamente, éramos populações rurais dispersas, e as famílias resolviam muitos dos seus problemas individualmente, com a água no poço e o lixo na valeta. Na era urbana generalizam-se os investimentos sociais, pois precisamos de redes de água e esgoto, de guias e sarjetas, de redes escolares, de sistemas de segurança, sistemas de transporte, destino final de resíduos sólidos e assim por diante, evidentemente assegurados com forte presença do setor público. São serviços de consumo coletivo. A urbanização expande naturalmente a dimensão pública das nossas atividades.

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Falar mal dos governos parece ser um consenso planetário, mas precisamos cada vez mais deles, inclusive nos países desenvolvidos que hoje pagam o preço do vale-tudo financeiro desregulamentado e das privatizações irresponsáveis. (Margareth Tatcher e Ronald Reagan, grandes defensores do neoliberalismo, doutrina que defende as privatizações dos serviços básicos e a não-intervenção do Estado na economia. Foto: White House Photographic Office

 

Há que levar em conta igualmente, nesta presença crescente do setor público em todo o planeta, a mudança da composição das nossas atividades. Há poucas décadas, o que chamávamos de atividades produtivas eram essencialmente atividades industriais, agrícolas e comerciais. Hoje passam a ocupar a linha de frente as políticas sociais. Vale lembrar que o maior setor econômico dos Estados Unidos não é a indústria bélica, nem a automobilística, mas a saúde, com 18,1% do PIB, e crescendo. No Brasil, somando a população estudantil, os professores e gestores da área educacional, estamos falando de mais de 50 milhões de pessoas, um quarto da população do país. As políticas sociais estão se tornando um fator poderoso de reestruturação social, pelo seu caráter capilar (a saúde tem de chegar a cada pessoa) e a sua intensidade em mão de obra, além de sua função essencial de aumento da produtividade sistêmica do país. São setores de atividade onde, com a exceção dos nichos de alta renda, o setor público tem prioridade evidente, frequentemente articulado com organizações da sociedade civil, outra área em expansão, caracterizando um setor público não governamental. A economia social e suas variantes ocupam um lugar crescente no conjunto das atividades econômicas, e com isto se expande a parte pública no conjunto.

Um terceiro eixo de transformação social é a evolução para a sociedade do conhecimento. Hoje quase todas as atividades envolvem uma forte incorporação de tecnologia, de conhecimentos dos mais variados tipos, do conjunto do que temos chamado de “intangível”, ou de “imaterial”. Quando o essencial do valor de um produto está no conhecimento incorporado, mudam as formas de organização correspondentes. Na base está um amplo processo social que envolve as pesquisas dos mais diferentes setores, a generalização do acesso à educação, e os sistemas de difusão de informações que elevam a densidade de conhecimento no conjunto da sociedade, com fortíssima participação de recursos públicos em todos os níveis. A tendência natural é os conhecimentos se tornarem bem público (creative commons), pela facilidade de disseminação que as tecnologias modernas permitem, e pela compreensão que gradualmente penetra na sociedade de que o conhecimento se multiplica melhor quando se compartilha. O conhecimento é um fator de produção cujo consumo não reduz o estoque, pelo contrário.

Retrato de Milton Friedman, um dos teóricos do neoliberalismo. Foto: The Friedman Foundation for Educational Choice
Retrato de Milton Friedman, um dos teóricos do neoliberalismo. Foto: The Friedman Foundation for Educational Choice

 

Quando o MIT, principal centro de pesquisa dos Estados Unidos, cria o OCW (Open Course Ware) passando a disponibilizar de forma aberta e gratuita as suas pesquisas, é porque funciona melhor: do lado do financiamento, porque permite pesquisa fundamental sem a obrigação de geração de lucro imediato; do lado da produtividade das pesquisas, pois a colaboração faz com que todos trabalhem na ponta, evitando travamentos e duplicações; e também do lado do aproveitamento pois com a divulgação aberta o conhecimento se multiplica. A China utiliza o sistema CORE (China Open Resources for Education). A Inglaterra contratou em 2012 Jimmy Wales, criador da Wikipedia, para montar o sistema de acesso aberto e gratuito a toda pesquisa britânica que envolva recursos públicos. O livre acesso ao conhecimento gera enriquecimento para todos, é uma forma inteligente de multiplicarmos os nossos recursos.

O OCW do MIT é um dos exemplos da gestão pública do conhecimento para otimização dos resultados sociais.
O OCW do MIT é um dos exemplos da gestão pública do conhecimento para otimização dos resultados sociais.

 

A urbanização, a expansão do peso relativo das políticas sociais e a evolução para a economia do conhecimento constituem megatrends, macro-tendências que transformam a sociedade, e que exigem de nós sistemas de gestão muito mais diversificados, descentralizados e flexíveis, regras do jogo renovadas, não bastando apenas o mercado, hoje dominado por estruturas cada vez mais oligopolizadas e burocratizadas por gigantes de intermediação.

Estamos assim, pensando o médio e longo prazos, evoluindo para uma sociedade em rede, para sistemas densamente interativos e colaborativos. A urbanização leva a uma ampliação acelerada das dinâmicas da gestão local, em que as comunidades se apropriam do seu desenvolvimento. As políticas sociais geram processos mais descentralizados e participativos. A sociedade do conhecimento nos leva para processos colaborativos em rede. As políticas públicas têm um papel chave a desempenhar nesta transição para uma sociedade moderna, e com isto aumenta a importância dos recursos públicos no funcionamento da sociedade em geral, e em consequência também a necessidade de democratizar as decisões e de assegurar a transparência dos fluxos. Temos de repensar o Estado.

Notas:

1. Schieber,George; Lisa Fleisher e Pablo Gottret – Gettting Real on Health Financing, Finance and Development, International Monetary Fund, Dezembro de 2007 http://www.imf.org/external/pubs/ft/fandd/2006/12/schieber.htm

2. The Economist, March 14th-20th 2009, p. 37, citando dados do Newsweek.

* Ladislau Dowbor, é doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, professor titular da PUC de São Paulo e da UMESP, e consultor de diversas agências das Nações Unidas. É autor de “Democracia Econômica”, “A Reprodução Social”, “O Mosaico Partido”, pela editora Vozes, além de “O que Acontece com o Trabalho?” (Ed. Senac) e co-organizador da coletânea “Economia Social no Brasil“ (ed. Senac) Seus numerosos trabalhos sobre planejamento econômico e social estão disponíveis no site http://dowbor.org’.

** Publicado originalmente no site Carta Maior.