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Quem ajudará os que ajudam?

Nem a polícia e nem os paramilitares conseguiram controlar os assassinatos seletivos em Carachi, no Paquistão. Foto: Adil Siddiqi/IPS

Carachi, Paquistão, 27/3/2013 – Perween Rehman, de 56 anos, dedicou sua vida à atividade humanitária. Como diretora do Instituto de Pesquisa e Capacitação do Projeto-Piloto Orangi, trabalhou em um dos maiores assentamentos irregulares desta cidade portuária paquistanesa durante anos, até que a mataram a tiros. Sua tarefa foi ajudar a colocar em uso um primitivo sistema de saneamento que se esperava atendesse 1,5 milhão de habitantes de Orangi.

Embora muitos elogiassem os esforços desta mulher para vigiar um programa comunitário de saneamento de sucesso, que foi replicado em partes da África do Sul, Ásia central, Nepal e Sri Lanka, outros acreditavam que seu trabalho merecia um castigo: no dia 13 foi morta a tiros em um incidente que até agora não foi reivindicado por nenhum grupo armado.

Enquanto os 18 milhões de habitantes de Carachi se esforçam para sobreviver a uma onda de violência, extremismo e assassinatos seletivos, está surgindo um novo e aterrador padrão: agora se considera legítimo tomar por alvo os que realizam trabalho humanitário.

Poucos acreditam na versão das autoridades de que o principal suspeito do assassinato de Rehman foi morto em um confronto com a polícia. As pessoas próximas a ela suspeitam que foi morta por um dos muitos e poderosos grupos de confisco de terras de Carachi, que têm interesse em adquirir terrenos estatais sobre os quais instalam assentamentos informais.

Cada vez fica mais claro que a violência não poderá ser erradicada de Carachi a menos que as autoridades enfrentem a florescente cultura armamentista na cidade. Em 2011, o Supremo Tribunal de Justiça foi informado de que o Ministério do Interior de Sindh havia concedido 180.956 licenças para armas nesse ano. O tribunal declarou que “Carachi deve ser limpa de todo tipo de armas aderindo às leis disponíveis nessa matéria e, se necessário, promulgando nova legislação”.

Estima-se que no Paquistão circulem 20 milhões de armas ilegais. A maioria delas contrabandeada do Afeganistão. Algumas são manufaturadas na região de Darra Adam Khel, em Khyber Pakhtunkhwa. Outras são importadas legalmente da China, Turquia e do Brasil por agentes devidamente autorizados pelo Ministério do Comércio. Também há fabricantes registrados de armas, como a governamental Ordnance Factory, em Wah, no distrito de Rawalpindi. Os fabricantes privados, situados principalmente em Peshawar, capital de Khyber Pakhtunkhwa, produzem pistolas, escopetas e rifles, entre outras armas.

Segundo Pervez Hoodbhoy, ativista pela paz e professor de física na Universidade Quadi-e-Azam, com sede em Islamabad, Rehman “trabalhou incansavelmente, mas silenciosamente, protegendo os habitantes pobres dos assentamentos de Carachi dos predadores que cobiçavam sua terra”. Rehman havia recebido ameaças de morte por suas tentativas de documentar a prática da máfia da terra de anexar terrenos ilegalmente, em conivência com partidos políticos, vendendo em seguida às milhões de pessoas que em Carachi necessitavam de moradia, criando assim um eleitorado de pobres e dependentes.

Chamando Rehman de “verdadeira heroína”, Hoodbhoy acrescentou: “Em um país repleto de armas, e com uma máquina estatal muito fraca, o confisco de recursos (terra) seguramente fará com que essas atrocidades ocorram novamente”. Na verdade, quase 60% de Carachi está integrada por assentamentos informais que carecem de serviços básicos.

A jornalista Najma Sadeque acredita que Rehman “passou por cima de poderosos elementos criminosos”. E afirmou à IPS que “onde está em jogo grandes quantias de dinheiro, como os bens de raiz, há perigo. Me surpreendeu que ela falasse abertamente sobre o problema; talvez nunca viu a si mesma como uma ameaça. Há muitos grupos envolvidos, internos e externos, deixando confusa a situação”.

Em dezembro, insurgentes mataram a tiros cinco trabalhadoras que vacinavam crianças contra a poliomielite, obrigando o governo a suspender a campanha de vacinação no lugar. Segundo a polícia, 2012 foi o pior ano em matéria de contagem de cadáveres: houve cerca de dois mil mortos em assassinatos seletivos e atentados com explosivos em Carachi.

Mas a violência não se restringe apenas a esta cidade. Em todo o Paquistão trabalhadores humanitários são alvo de ataques, enquanto equipes de vacinadores contra a pólio são perseguidas e os professores assassinados. No começo deste ano homens armados mataram sete professores e trabalhadores da saúde, seis deles mulheres, no distrito de Swabi, em Khyber Pakhtunkhwa.

“Por um lado estão os enlouquecidos fundamentalistas religiosos armados, os quais os mulás levam a um estado de loucura por meio dos alto-falantes das mesquitas e da televisão. Matam as mulheres que vacinam contra a pólio e disparam contra estudantes”, disse Hoodbhoy à IPS. “Por outro lado, está o igualmente diabólico assassinato de trabalhadores humanitários, com Perween Rahman”, acrescentou.

Como o Paquistão está classificado como um dos cinco países mais perigosos do mundo para os trabalhadores humanitários, segundo um informe de 2012 da organização Humanitarian Outcomes, muitos consideram que o espaço para esta atividade diminui rapidamente no país. Em todo o mundo, os ataques contra socorristas subiram de 129 em 2010 para 150 em 2012, em fatos nos quais foram assassinados 308. Uma vasta maioria dos atentados (cerca de 72%) ocorreu em cinco países: Afeganistão, Somália, Sudão, Sudão do Sul e Paquistão.

Neste último país a situação dos socorristas estrangeiros não é melhor do que a de nacionais como Rehman. Em sua edição de dezembro passado a revista The Economist afirmou: “As autoridades não melhoraram o clima para os trabalhadores humanitários. Acossando os profissionais da ajuda, restringindo seus movimentos e limitando seus vistos, temendo que entre eles haja espiões”. No ano passado, a Cruz Vermelha suspendeu boa parte de seu trabalho no Paquistão depois que um médico britânico foi assassinado e decapitado na cidade de Quetta.

A paquistanesa Nuzhat Lotia, especialista em desenvolvimento, duvida que as coisas vão melhorar. “A juventude está perdendo modelos importantes, e a violência é vista como norma, já que é a isso que está exposta e o que ouvem dia após dia”, lamentou. Embora o governo liderado pelo Partido Popular do Paquistão tenha completado este mês sua gestão quinquenal e passará oficialmente o poder a um governo interino até que sejam realizadas as eleições de 11 de maio, Sadeque acredita que a “tendência continuará”, porque todos os partidos políticos têm interesses egoístas.

Embora o desespero pareça ter ganho os pensamentos até dos membros mais resilientes e otimistas da sociedade civil paquistanesa, Hodbhoy pediu urgência aos que estão comprometidos com a criação de uma sociedade melhor e que não desistam. “Devemos às nossas futuras gerações continuar dizendo a verdade, seguir sugerindo soluções e continuar lutando”, ressaltou. Envolverde/IPS