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Soja e cana, nova fórmula do conflito indígena no Brasil

Os guarani-kaiowás já não esperam que o governo proteja suas terras. Foto: Cortesia CIMI/Cléber Buzatto

 

Rio de Janeiro, Brasil, 14/11/2012 – A ameaça de suicídio coletivo por parte de indígenas guarani-kaiowá no sudoeste do Brasil colocou em evidência uma nova fórmula de agravamento dos conflitos pela terra ancestral: a expansão da soja e da cana-de-açúcar, de alto valor de exportação para o país. O estudo Em Terras Alheias – A Produção de Soja e Cana em Áreas Guarani no Mato Grosso do Sul, da organização Repórter Brasil, quer contribuir para essa discussão. Com base em dados oficiais e investigações nas aldeias desse Estado, o trabalho mapeou a incidência da cana-de-açúcar e da soja em seis áreas indígenas.

“Quando aumenta o preço de uma commodity (produto básico) no mercado internacional, é mais vantajoso plantar soja ou cana-de-açúcar e a terra encarece. Com maior demanda por terras, o fazendeiro se arma contra os indígenas e temos picos de conflito como no ano passado”, disse à IPS uma das responsáveis pelo estudo, a jornalista e pesquisadora Verena Glass. No Mato Grosso do Sul, onde vivem cerca de 44 mil guaranis-kaiowás, os conflitos deste ano foram em propriedades pecuárias, mas a lógica é a mesma: “disputa entre commodities e terras reivindicadas por indígenas”, ressaltou. Quando o informe foi divulgado, no dia 24 de outubro, os conflitos se agravaram.

O estudo foi realizado em julho, quando as ocupações dos kaiowás para recuperar territórios geraram enfrentamentos e reações violentas por parte dos fazendeiros, inclusive com ataques com armas de fogo contra seus acampamentos. Mas o conflito transcendeu as fronteiras estaduais quando cerca de 30 famílias da comunidade Pyelito Kue anunciaram sua “morte coletiva”, caso fossem obrigadas a abandonar suas terras, em processo de demarcação e homologação.

Cansados de esperar em acampamentos na beira de estradas, os indígenas retomaram uma pequena parte de suas terras originárias, ocupadas por fazendas. Porém, uma ordem judicial ordenou sua retirada, em outubro. Quando a notícia, interpretada como um suicídio coletivo, circulou pelo mundo por meio das redes sociais, o governo conseguiu reverter a decisão judicial e que os indígenas permanecessem no lugar até o final da demarcação.

Os kaiowás disseram ter ficado “meio felizes” com a decisão, disse à IPS Egon Heck, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Felizes porque não seriam expulsos de suas terras, mas não totalmente porque ficariam confinados por tempo indeterminado em apenas um hectare e sem possibilidade de circular fora dele. “É uma situação agressiva de confinamento, que começou no século passado e que foi atualizada por esta decisão judicial”, afirmou o representante do Cimi, vinculado à Conferência dos Bispos do Brasil (CNBB).

Heck quer saber até que ponto quase 200 indígenas, “ligados ao seu território e aos recursos naturais como modo de vida, conseguirão sobreviver em um hectare. Será que a leitura da Constituição, que garante a terra a esses povos de maneira coletiva, está subjugada diante da propriedade privada?”, questionou. Maurício Santoro, assessor para direitos humanos da Anistia Internacional no Brasil, disse à IPS que o Mato Grosso do Sul tem áreas indígenas densamente povoadas, mas espalhadas entre cultivos de soja e áreas de pecuária. “Essas terras ainda não foram demarcadas pelo governo federal, e esse vazio jurídico estimula os conflitos”, alertou.

Assim como Pyelito Kue, outras comunidades foram expulsas de suas terras e estão acampadas nas margens de rodovias, sem serviços médicos e ameaçadas por pistoleiros pagos pelos fazendeiros. “A demora também está matando o povo. Ninguém decide. Vamos ocupar todas as terras mesmo sabendo que não há segurança, que vamos morrer. O povo decidiu”, disse em setembro à IPS o indígena kaiowá Tonico, se referindo às ocupações. Os índices de desnutrição, suicídio e violência são muito altos, afirmou Santoro. Segundo o Cimi, o suicídio está presente há tempo entre os kaiowás e em outros grupos guaranis, sobretudo entre os jovens. De 2003 a 2010, houve 555 suicídios.

Desde 1991, foram homologadas apenas oito terras para estas comunidades, que formam o segundo povo indígena mais numeroso do Brasil, e vive em áreas diminutas. A expansão do agronegócio, fortemente impulsionado pelo governo estadual, agravou a situação. O tipo de agricultura que pratica, baseada no uso intensivo de pesticidas, destruição de micro-organismos dos solos e extinção de rios e florestas, foi um “agravante fortíssimo” para um processo histórico de extinção e expulsão dos guarani-kaiowás, descreveu Heck.

A mecanização agrícola e o uso de agrotóxicos reduziram ao mesmo tempo o emprego de mão de obra indígena que, sem possibilidade de obter frutos de suas terras, trabalha em fazendas ou usinas de etanol (extraído da cana-de-açúcar). “Em pouco tempo não terão nem esse trabalho que, embora seja semiescravo, é praticamente a única renda” disponível, além da assistência governamental, alertou Heck.

A organização Repórter Brasil iniciou uma campanha para que as empresas multinacionais deixem de comprar matérias-primas de fazendas localizadas irregularmente em terras indígenas. “A proposta é que os grandes compradores deixem de adquirir o que é produzido em terras indígenas como uma forma de castigo. Dessa forma se enfraquece economicamente os produtores e se reduz um pouco o valor dessa terra indígena”, explicou Glass.

Nesse contexto, conseguiu-se que duas usinas de etanol do Estado, São Fernando e Raízen, se comprometessem a não comprar mais cana de áreas indígenas. Contudo, outras, como Monte Verde, da multinacional Bunge, adquirem grãos de cinco propriedades instaladas em terras indígenas ainda em processo de demarcação, segundo Glass. A empresa argumenta que não está infringindo normas enquanto os fazendeiros não forem obrigados por lei a abandonarem essas áreas.

O governo de Dilma Rousseff prometeu acelerar a regularização de terras. Já os produtores rurais pedem compensações econômicas para se retirarem delas, e criticam que se pague um erro “com outro erro histórico”: penalizar um setor produtivo. Envolverde/IPS