Política Pública

Somalilândia aposta no Porto de Berbera

Por James Jeffrey, da IPS – 

Hargeisa, Somalilândia, 21/2/2017 – O cruzamento de fronteiras pode ser uma experiência intimidadora na África, embora agora isso também ocorra na Europa e nos Estados Unidos, e inclusive nos aeroportos. Porém, ir da Etiópia à Somalilândia e atravessar o povoado fronteiriço de Togo-Wuchale é gratamente surrealista. Em lugar de submeter as pessoas a um severo controle fronteiriço, os funcionários de imigração da Somalilândia as recebem com largos sorrisos e mantêm conversação amigável enquanto carimbam o selo de entrada sobre o visto no passaporte.

Sempre se alegram com a chegada de estrangeiros, que interpretam como uma espécie de reconhecimento a esse país, que legalmente não existe para a comunidade internacional, apesar de ter se proclamado independente da Somália em 1991, após uma guerra civil que deixou cerca de 50 mil mortos.

 

Na capital da Somalilândia os visitantes encontram uma mescla de apaixonantes mercados tradicionais em sintonia com modernos edifícios e centros comerciais com faixadas de vidro, cafés com wi-fi e ginásios com ar-condicionado, tudo financiado pela diáspora e salpicado pelo típico dinamismo somaliano. Foto: James Jeffrey/IPS

 

Protetorado britânico de 1886 a 1960, que depois se uniu à Somália italiana para criar o moderno Estado de Somália, a Somalilândia tem governo autônomo desde 1991 e conta com todos os componentes de um Estado funcional, como moeda própria, autoridades, polícia e exército, além de uma ordem legal na rua. Além disso, desde 2003 a Somalilândia realizou várias eleições democráticas que permitiram passagens de poder ordenadas.

A vontade de existir é clara nesta capital, deixada em ruínas pela guerra civil que terminou em 1991 e com sua população em acampamentos de refugiados na vizinha Etiópia. Um episódio infame gravado na memória coletiva é a decolagem de aviões do regime ditatorial encabeçado por Mohammed Siad Barre, que depois regressaram para bombardear a cidade.

Esses integrantes do sindicato de marinheiros da Somalilândia, no Porto de Berbera, se queixam que a falta de investimento estrangeiro se traduz no fato de não ganharem o mesmo – ganham cerca de 220 por mês – que os trabalhadores estrangeiros, porque não pertencem a uma organização internacional reconhecida. Foto: James Jeffrey/IPS

 

Mas os visitantes desta ensolarada capital de 800 mil habitantes encontram uma mescla de apaixonantes mercados tradicionais em sintonia com modernos edifícios e centros comerciais com fachadas de vidro, cafés com wi-fi e ginásios com ar-condicionado, tudo financiado pela diáspora e salpicado com o típico dinamismo somaliano.

“Fazemos todas as coisas corretas que o Ocidente pede, mas continuamos sem obter nada por isso”, afirmou o ministro de Informação, Cultura e Orientação Nacional, Osman Abdillahi Sahardeed. “Este é um país resiliente que depende de si mesmo, não buscamos esmolas, mas que nos deem uma ajuda”, acrescentou. A crescente exasperação do governo e da população não surpreende, pois apesar de seus êxitos este continua sendo um país muito vulnerável.

A fragilidade da economia é perigosa, e a falta de reconhecimento impede que receba apoio internacional e tenha acesso a organismos como Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional (FMI). O governo conta com um diminuto orçamento de US$ 250 milhões, 60% dos quais destinados às forças policiais e de segurança, para manter o que o país considera um de seus maiores êxitos e argumentos em favor de seu reconhecimento: a paz e a estabilidade.

Além disso, tem uma grande dependência dos idosos do clã local, mas é difícil para qualquer governo provar sua legitimidade quando precisa da ajuda de organizações humanitárias internacionais, de organizações não governamentais locais e do setor privado para prestar os serviços essenciais. De fato, a Somalilândia sobrevive graças às remessas enviadas pela diáspora, estimadas entre US$ 400 milhões e pelo menos o dobro dessa quantia por ano, e da venda de grande quantidade de gado aos países árabes.

A pobreza generalizada e os vários grupos de homens que se vê diariamente nas ruas bebendo chá doce e mascando jat, uma planta estimulante, revelam o grande desemprego crônico que afeta o país. “Cerca de 70% da população tem menos de 30 anos, e não terão futuro sem o reconhecimento” internacional, destacou Jama Musse, professor de matemática que voltou da Itália para trabalhar em um centro da Fundação Cultural do Mar Vermelho, que dá oportunidades artísticas para os jovens de Hargeisa. “O mundo não pode fechar os olhos, é preciso atender a questão da Somalilândia”, ressaltou.

Abdi Mohamad, um veterano da guerra civil da Somália, explica claramente seus sentimentos em relação à Somalilândia. Foto: James Jeffrey/IPS

 

Numerosos observadores apontam o risco da intrusão do wahabismo, uma versão mais fundamental do Islã do que a conservadora, mas relativamente moderada, que é praticado na Somalilândia, um motivo de preocupação particular nessa região do mundo. “Os homens jovens são um grupo já preparado de pessoas sem rumo e passíveis de recrutamento por combatentes extremistas com uma agenda precisa”, alertou Rakiya Omaar, advogado e presidente do Instituto Horizonte, uma consultoria local que ajuda as comunidades a superarem a falta de desenvolvimento e a conseguir a estabilidade.

A chave da recuperação econômica da Somalilândia, segundo numerosos analistas, está em aproveitar a forte situação econômica da Etiópia, o segundo país mais povoado e com a economia de maior crescimento da África, de acordo como FMI. E para isso é fundamental Berbera, um antigo centro comercial marítimo, ofuscado há tempos pelos portos de Djibuti, mais ao norte. No momento, o porto de Berbera está em expansão, o que pode transformá-lo e devolver seu status de grande centro regional, ajudando a financiar o sonho de construir a nação de Somalilândia.

Em maio de 2016, a empresa DP World, com sede em Dubai, ganhou uma licitação para administrar por 30 anos e ampliar Berbera, um projeto avaliado em US$ 442 milhões, que inclui a ampliação do porto e a reconstrução de 268 quilômetros de estrada dali até a fronteira com a Etiópia. Sem saída para o mar, a Etiópia busca há tempos diversificar seu acesso ao mar, assunto de grande interesse estratégico. Atualmente, 90% do seu comércio passa por Djibuti, um pequeno país com crescente rede de portos que arrecada US$ 1 bilhão por ano só da Etiópia.

À Somalilândia interessa que cerca de 30% desse intercâmbio comercial passe por Berbera, e a Etiópia está mais do que de acordo com a ideia, pois já incorporou essa proporção na última versão do Plano de Transformação e Crescimento, que define a política econômica desse país até 2020. Os dois Estados assinaram um memorando de entendimento sobre comércio, segurança, saúde e educação em 2014, antes do acordo assinado em março de 2016 para uso do Porto de Berbera. E a Etiópia poderia ser o início de uma política comercial rentável.

“Poderia ser uma porta de entrada para a África, não só para a Etiópia”, afirmou Sharmarke Jama, assessor econômico do governo local durante as negociações para outorgar a concessão do porto. “Na medida em que nossos interesses estão em sintonia com os da região e nos integrarmos à economia, só poderá servir para conseguir o reconhecimento da comunidade internacional”, ressaltou.

Mas o reconhecimento não será fácil, porque poderia chegar a prejudicar os esforços internacionais de décadas para acertar a situação na Somália, além de abrir uma caixa de Pandora com reclamações separatistas na região e em outras zonas da África. No dia 13 de abril do ano passado, mais de 500 migrantes morreram em um barco que naufragou no Mar Mediterrâneo. A maioria dos meios de comunicação informou que muitos dos mortos eram somalianos. Mas em Hargeisa sabem que muitos eram residentes da Somalilândia.

“Por que partem? Desemprego”, disse o ex-ministro das Relações Exteriores, Abdillahi Duhe, que agora trabalha como consultor na capital da Etiópia. “Este é um momento muito importante, superamos a etapa de recuperação e temos paz, mas restam muitos obstáculos pela frente”, acrescentou. Envolverde/IPS