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Terramérica - Hortas escolares combatem a fome na Argentina

Um grupo de crianças trabalha na horta em sua escola rural La Divina Pastora, no município General Alvarado, na Argentina. Foto: Cortesia da Fundação General Alvarado
Um grupo de crianças trabalha na horta em sua escola rural La Divina Pastora, no município General Alvarado, na Argentina. Foto: Cortesia da Fundação General Alvarado

Por Fabiana Frayssinet*

Buenos Aires, Argentina, 11 de maio de 2015 (Terramérica).- Na Argentina, onde, apesar de sua vasta terra fértil, milhões de famílias não satisfazem suas necessidades alimentares, o programa Horta Criança promove cultivos orgânicos em escolas primárias rurais, para ensinar que podem ser o germe para combater a fome. Dos 105 estudantes internos de segunda-feira a sexta-feira na escola rural La Divina Pastora, localizada em Mar del Sul, no município de General Alvarado, 80% provêm de famílias de alta vulnerabilidade social.

“Cerca de 10% têm déficit nutricional, desde seu primeiro ano, inclusive em sua época de lactância ou gravidez da mãe. Encontramos déficit de cálcio, que incide nas cáries, no crescimento e muitas vezes em seu amadurecimento”, afirmou ao Terramérica a diretora do centro, Rita Darrechon.

Essa escola pública com gestão privada, que fica a 500 quilômetros da capital, recebe alunos de seis a 14 anos, e alguns mais velhos atrasados nos estudos. Vivem em zonas rurais ou periurbanas da província de Buenos Aires, mas a maioria não tem cultura sobre plantios, nem conhecimentos ou ferramentas para aplicá-la. “Em lugares historicamente de agricultores, as crianças não sabem o que fazer com a terra. Não sabem que, quando se tem fome, a semente em suas mãos pode dar comida”, pontuou ao Terramérica a coordenadora geral da fundação Huerta Niño, Bárbara Kuss.

Essa instituição sem fins lucrativos foi criada em 1999 pelo empresário Federico Lobert e procura ajudar a reduzir a fome entre os estudantes de escolas rurais. A iniciativa nasceu quando, em uma viagem durante sua juventude, Lobert ouviu de uma professora rural que “as crianças não podiam estudar porque não comiam e que consumiam folhas da laranja para acalmar a dor de estômago”. Algo que considerou “um triste paradoxo” em um país que produz “alimentos em abundância para milhões de pessoas em todo o mundo”.

As hortas beneficiam 20 mil crianças de 270 escolas rurais em áreas de alto risco social, como a de La Divina Pastora, e as hortaliças são consumidas em seus refeitórios. “Nos pareceu uma boa oportunidade de promover, de forma conjunta, um alimento saudável, com recursos naturais que estão ao alcance de suas mãos”, destacou Darrechon.

A Pesquisa Nacional de Nutrição e Saúde indica que 35% da população infantil argentina reside em lares com “necessidades básicas insatisfeitas”. Dessa proporção, apenas 53,4% recebe assistência alimentar por meio de diferentes programas. As crianças com deficiências graves de nutrição têm maior predisposição para adoecer e sua capacidade de desenvolvimento é reduzida, às vezes para toda a vida, ressaltou Kuss.

O Horta Criança busca atenuar essas diferenças com o lema “não se trata de dar de comer, mas de ensinar a produzir o próprio alimento”. A intervenção da fundação dura aproximadamente um ano, mas seu impacto, segundo Kuss, “é para toda a vida”. O começo é construir uma cerca para uma horta com cerca de meio hectare. “Ensinamos porque têm que reparar a cerca, porque pode ser nocivo para a saúde se entrarem cães ou outro tipo de animais, ensinamos que esterco aduba a terra, mas não o do cão”, explicou.

Previamente, há reuniões com alunos, pais e professores, para estabelecer suas necessidades segundo o clima, a qualidade da terra e o acesso a água. Depois são armados os canteiros e são ensinados o plantio e a colheita, bem como o ciclo completo do cultivo em suas duas temporadas, a de outono-inverno e a de primavera-verão. “Explicamos o que fazer passo a passo, porque é muito bonito o tomate ficar vermelho e a alface brotar, mas também é preciso saber o que se faz com a alface depois… Se deve-se tirar as folhas, voltar a semear ou esperar até a próxima temporada”, exemplificou Kuss.

O programa tem o aval do Ministério da Educação e a assistência técnica e sementes do Pró-Horta, um projeto de práticas agroecológicas e comunitárias do governamental Instituto Nacional de Tecnologia Agrária. Com doações individuais, de empresas ou outras organizações, destina, em média, US$ 4,5 mil a cada horta, aplicados no desenvolvimento de ferramentas adaptadas às crianças, em insumos para hibernação, ou recursos extraordinários para moinhos ou sistemas de irrigação específicos.

Um menino entre cebolas armazenadas no povoado de Arraga, na província de Santiago del Estero. Segundo dados oficiais, esta é uma das províncias do noroeste da Argentina onde vivem mais famílias na pobreza, embora sua principal atividade seja a agricultgura. Foto: Fabiana Frayssinet/IPS
Um menino entre cebolas armazenadas no povoado de Arraga, na província de Santiago del Estero. Segundo dados oficiais, esta é uma das províncias do noroeste da Argentina onde vivem mais famílias na pobreza, embora sua principal atividade seja a agricultgura. Foto: Fabiana Frayssinet/IPS

Segundo Kuss, a participação comunitária é fundamental para que o projeto seja sustentável. “Uma horta requer presença. Se não se controla pragas, não se irriga, não se retira o mato, não se corta o cultivo, ela morre”, enfatizou. Isso seria “um fracasso para as crianças, o que é a última coisa de que precisam com as falências que já têm”, ressaltou.

A iniciativa estimula práticas agrícolas com adubos e pesticidas ecológicos. Por exemplo, planta-se flores aromáticas para afugentar insetos. Não se usa pesticidas, embora muitas vezes sejam aplicados em campos próximos. “Ensinamos às crianças que o tomate que nascerá de sua horta pode não ser grande como o de supermercado, mas será vermelho e saboroso”, afirmou Kuss.

A horta integra o currículo escolar, desde as disciplinas exatas, com a medição do perímetro da horta, até as de ciências naturais e de linguagem, com os textos explicativos. “É como um laboratório ao ar livre. É muito mais fácil a experiência direta do que a leitura de um livro”, explicou Darrrechon. Às vezes, os alunos replicam as hortas em suas casas ou comunidades e alguns que saem de La Divina Pastora optaram por escolas secundárias agrícolas.

A iniciativa transmite também hábitos alimentares saudáveis, mas com certas dificuldades. “Os rabanetes eram divinos, vermelhos, mas quando eram mordidos, eram jogados fora. Foi preciso prepará-los com outras verduras, como acelga, em tortas que incluíam carne moída para disfarçá-los, porque veem da cultura da comida-lixo ou da batata e carne”, recordou a diretora da escola.

Nas escolas periurbanas de Buenos Aires, algumas hortas contribuem também para combater a violência e a deserção escolar, “retendo as crianças com algo atraente que evita que fiquem nas ruas”, destacou Kuss.

O representante na Argentina da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), Valdir Welte, afirmou ao Terramérica que estas hortas escolares são “de extrema importância” para melhorar a alimentação. “Constituem uma ferramenta pedagógica que potencializa os processos de ensino e aprendizagem das crianças e cultivam valores de solidariedade, cooperação mútua e trabalho coletivo”, acrescentou.

Segundo Welte, “as crianças não só precisam comer bem, como devem aprender a comer bem e a cultivar seus próprios alimentos, caso necessário”. Além disso, as hortas “podem ser espaços de capacitação para toda a comunidade, onde os chefes de famílias possam adquirir as habilidades necessárias para a autoprodução de alimentos”, apontou.

Para Kuss, a principal colheita das hortas é tão tangível como seus frutos. “Não lhes damos apenas comida. Estamos oferecendo diferentes valores que podem tocar com suas mãos. Ajudando-os, dizendo-lhes: ‘vocês podem’”, ressaltou. Envolverde/Terramérica

* A autora é correspondente da IPS.

 

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Artigo produzido para o Terramérica, projeto de comunicação dos Programas das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e para o Desenvolvimento (Pnud), realizado pela Inter Press Service (IPS) e distribuído pela Agência Envolverde.