Opinião

Uma tradição não se derrete na boca

Foto: Divulgação
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Como foi que a tradição da Páscoa se reduziu a este ponto de nossas crianças e adolescentes só a identificarem como um dia de comer chocolate?

Por Maria Helena Masquetti*

Os jovens surgem a todo momento com expressões diferentes, umas divertidas, outras nem tanto, mas que podem nos fazer pensar. Dois garotos, por volta dos treze anos, dobram para trás as nucas sob o túnel forrado de ovos de vários tamanhos e preços ao longo do supermercado: “Véi, na boa, isso sim é que é Páscoa!”, diz um para o outro, tocando os ovos maiores e, por sinal, mais caros.

Se criticar quem gosta de chocolate, não me passa pela cabeça, pela boca é que não há de ser. Chocolate é gostoso mesmo. O problema, infelizmente, é outro. Como foi que a tradição da Páscoa se reduziu a este ponto de nossas crianças e adolescentes só a identificarem como um dia de comer chocolate?

Por que a escola, por exemplo, não estaria dando conta de preservar para as crianças o sentido da Páscoa assim como de outras festas tradicionais? Parte da explicação podem ser as 5 horas e 35 minutos que elas passam, por dia, em frente à televisão* contra apenas 3 horas e 51 minutos, tempo médio que ficam na escola**. Outra parte pode estar na crença que muitos pais têm de estar fazendo os filhos felizes ao atender-lhes tantos pedidos quando, na verdade, o efeito é contrário. Ao se ausentarem na busca de mais recursos para suprir esse consumo exagerado, acabam deixando, isto sim, o caminho livre para o marketing assediar ainda mais os pequenos e colocar em liquidação os melhores dias da infância.

Mas a parte crucial desta banalização da Páscoa cabe, sem dúvida, às avalanches diárias de comerciais, dramaticamente aumentadas nestes dias de festa. Se bastam 30 segundos para um comercial de alimentos influenciar uma criança***, o que dizer da repetição das mensagens várias vezes ao dia durante semanas ou meses? E o que dizer dos 33% de crianças acima do peso e das quase 15% já com obesidade****, sendo seduzidas a consumir sem medida pelas apetitosas mensagens? Ou para ganhar brinquedos que ocupam dentro de um ovo o lugar de uma tradição milenar que, aos poucos, vai derretendo literalmente na boca e na memória de nossas crianças.

Preservar a história, a arte, a pintura, a escultura, os achados arqueológicos, as crenças e as tradições culturais é muito parecido com guardar com carinho nossa própria certidão de nascimento. E de forma nenhuma podemos culpar as crianças por estarem perdendo a noção desses valores. Ninguém mais do que elas querem saber tanto sobre a origem das coisas, de onde herdamos nossos costumes e o porquê de celebrarmos esta ou aquela data. E, por falar sobre de onde vieram as coisas, vale ficarmos atentos também às incansáveis denúncias sobre a extensa lista de marcas famosas de chocolate cuja obtenção da matéria prima tem se valido do trabalho escravo infantil.

Aproveitando a gíria dos meninos, na boa, véi, é insano demais ver tantos valores humanos reduzidos a mero nicho de vendas. Seja a Páscoa uma devoção religiosa, uma saudação à primavera, um símbolo de renovação, de fertilidade ou simplesmente um dia de confraternização entre os povos, ela está no passado e na infância de todos nós. Que nesta Páscoa, portanto, nossa festa maior seja a preservação das tradições para nossas crianças, a determinação de reagir às pressões do consumo e aquela certeza mais doce do que chocolate ao abraçar quem amamos: “Isso sim é que é Páscoa!” (#Envolverde)

* IBOPE

**FGV – Centro de Políticas Sociais

***Associação Dietética Norte Americana

****IBGE

Maria Helena Masquetti é graduada em Psicologia e Comunicação Social, possui especialização em Psicoterapia Breve e realiza atendimento clínico em consultório desde 1993. Exerceu a função de redatora publicitária durante 12 anos e hoje é psicóloga do Instituto Alana.