Sociedade

1 ano depois da implantação da ciclofaixa na avenida Rebouças, em São Paulo

Por Rogério Viduedo e Giuliana Pompeu* – 

Um ano depois, implantação da ciclofaixa leva mais ciclistas para a avenida Rebouças, diminui sinistros com motociclistas e confere mais segurança para pedestres

É notável a mudança na paisagem urbana um ano após a implantação das ciclofaixas em ambos os lados da avenida Rebouças, uma via radial que liga os altos da avenida Paulista a avenida Brigadeiro Faria Lima e que chegou a figurar na décima segunda posição entre as vias com maior índice de severidade medido pela CET em 2017. De acordo Plano de Segurança Viária da Cidade de São Paulo, a meta global para ser atingida em 2028 é a redução da taxa de mortalidade de 6,95 em 2018 para menos que 3 óbitos por 100 mil habitantes e chegar o mais próximo possível da Visão Zero, conceito onde nenhuma morte no trânsito é aceitável.

Agora, além da tradicional disputa entre carros, ônibus e motociclistas, pode-se observar as filas de ciclistas evoluindo ao longo dos 1.200 metros do trecho mais plano, em um balé vagaroso e constante de pedaladas, a maioria de homens, em bicicletas próprias ou alugadas. Na esquina com a avenida Pedroso de Moraes, por exemplo, a calma dos ciclistas que chegam desde a avenida Brasil, contrasta com a gritaria das buzinas de motociclistas que pedem passagem entre os carros parados no tráfego, ou aceleram inadvertidamente no espaço reservado ao corredor de ônibus e táxis com passageiros.

Fila de ciclistas: ciclofaixa mudou a paisagem urbana

De acordo com a planilha Infosiga, plataforma do Governo do Estado de São Paulo que reúne ocorrências com lesões e óbitos provocados pelo trânsito, pertencem aos motociclistas a maior quantidade de sinistros não-fatais na Rebouças. Neste ano, por exemplo, eles protagonizaram 42 ocorrências do total de 89, ou quase 50%. O número, no entanto, é bem menor do que os registrados em 2020, com 66 casos, e em 2019, quando 80 ocupantes de motos sofreram lesões naquela via.

Viagens aumentaram 131%

A nova estrutura cicloviária foi instalada no trecho principal, duplicado, e possui  extensão de 3,3 quilômetros, terminando na avenida Brigadeiro Faria Lima, no cruzamento onde se localiza o Túnel Jornalista Fernando Vieira de Mello. O outro trecho, menos conhecido, é uma rua de mão dupla, paralela à Avenida Eusébio Matoso, que termina na Avenida Nações Unidas (Marginal Pinheiros), em frente ao Shopping Eldorado, onde já existia uma ciclofaixa bidirecional.

Pouco mais de três meses após ser concluída, a CET instalou um contador de ciclistas em ambos os lados da Rebouças, nos números 1.164 e 1.168, próximo à rua Capote Valente. Ele ficou lá de 27 de fevereiro a 8 de março e registrou média diária de 1.251 bicicletas e pico de 1.509 passagens no domingo em 28 de fevereiro.

Como comparação, em seis de dezembro de 2018, a Associação de Ciclistas Urbanos de São Paulo – Ciclocidade, promoveu uma contagem de ciclistas na ciclovia da Faria Lima bem na esquina com a Rebouças. Dos 9.110 bicicletas e patinetes que passaram por lá, 707 tiveram a Rebouças como origem ou destino.

A pedido desta reportagem, o Strava, aplicativo de celular que registra corridas e pedaladas, produziu um comparativo que ratifica a adesão maciça de ciclistas à ciclovia da Rebouças. Em um ano o número de viagens de usuários aumentou 131%  no sentido bairro-centro, em direção aos altos da avenida Paulista. Foram 16.827 viagens de novembro de 2020 a novembro de 2021 contra 7.271 viagens registradas no período anterior. No sentido inverso, em direção à Faria Lima,  a alta foi mais modesta, 25% de crescimento entre novembro de 2020 e 2021, com total acumulado de 8.569 contra 6.846 viagens acumuladas durante o período anterior (2019 a 2020).

Estímulo na subida

Subir o trecho inicial da Rebouças onde a inclinação faz com que muita gente vá para a calçada empurrar a bicicleta já não é mais um entrave para a enfermeira Simone Penninck. “Antes a gente tinha que competir com carros e motos e agora eu me sinto mais segura subindo a Rebouças pela ciclofaixa. Fez uma grande diferença, eu uso mais, vou mais vezes para a Paulista e para o centro utilizando a bicicleta”, salienta a ciclista que diariamente usa a bicicleta para sair de casa, na região da vila Sônia, para trabalhar em Pinheiros, cerca de seis quilômetros distante.

A enfermeira Simone Penninck: ciclofaixa estimula o pedalar nas subidas

Ciclista experiente e integrante do coletivo Bike Zona Oeste, Simone também tem críticas ao desenho viário, principalmente no trecho mais íngreme e nos cruzamentos mais movimentados. “Existem áreas que deixam a gente insegura, principalmente próximo ao HC (Hospital das Clínicas) que está bastante estreita”, observa. Diz ainda que são constantes os conflitos com motoristas nos cruzamentos com a rua Gabriel Monteiro da Silva e avenidas Henrique Schaumann e Faria Lima, onde, segundo ela, os tempos de semáforo privilegiam o fluxo de automóveis “em detrimento dos ciclistas”.

Para a urbanista especialista em mobilidade Suzana Nogueira, o desenho adotado pela área técnica da Cia de Engenharia de Tráfego obedece aos parâmetros mínimos indicados pela legislação nacional e internacional, mas não é atrativo para novos ciclistas. “É uma opção para não tirar nenhuma pista veicular, priorizando a circulação de carros, o que é uma forma de tentar mediar todos os interesses de quem já utiliza a via. É respeitável, mas isso também restringe todo o potencial de atratividade dela para novos ciclistas”, explica.

Suzana entende que a solução é melhor do que não ter estrutura alguma, mas analisa que em uma via arterial com grande volume como é a Rebouças caberia uma ciclovia isolada, tal como na Faria Lima. “É sempre mais atrativo e atraente – e mais seguro – é claro, ter uma estrutura com maior suporte à circulação de ciclistas”, aponta.

Pequenas desavenças

Em uma das ruas transversais à Rebouças, um grupo de jovens ciclistas entregadores  está descansando na calçada entre uma jornada e outra. “Ia fazer falta se não tivesse a ciclofaixa da Rebouças”, reforça Felipe Santos, de 18 anos, que atende a reportagem junto com seu companheiro de entregas, William Cavalcanti. Os dois pedalam todos os dias vindo da cidade vizinha de Taboão da Serra, distante 15 quilômetros de Pinheiros. Eles só vão ao bairro para “ganhar um dinheiro” com as entregas que fazem por meio de aplicativos de delivery. Para eles, a estrutura poderia ser melhor se não houvesse tanto conflito com outros veículos.

William relata que não passa um dia em que não discuta com alguém. “É todo dia. A gente está passando quando alguém buzina, quer fechar; parece que não respeita o espaço de cada um. Sempre tem uma ‘desavencinha’ no trânsito”, reclama.

Ao fundo, moto invade ciclofaixa: desavenças com ciclistas

Em apenas dois meses trabalhando como manobrista de automóveis em um prédio comercial na altura do número 2.350 da avenida, Ricardo Miranda relata já ter visto muitas “barbaridades na ciclofaixa”. “Eu já vi um ciclista quase batendo de frente com outro que vinha na contramão”, acusa. Ele relata que a ciclofaixa é constantemente invadida por carros guiados por motoristas de aplicativos. “Às vezes param só para ver o celular”, diz.

Bem visível

O conflito de ciclistas com veículos automotores pode ser medido pelas ocorrências de trânsito registradas pela plataforma Infosiga do Governo do Estado de São Paulo.  Os sinistros não-fatais entre carros e bikes mais que triplicaram em três anos, partindo de três registros em 2019 para seis em 2020 e até outubro deste ano já foram 10. Desses, os automóveis são responsáveis por nove.

No entanto, Alexandre Trunkl – secretário Adjunto de Mobilidade e Trânsito da cidade, alega que nenhuma dessas ocorrências com ciclistas ocorreu nas ciclofaixas e minimiza os conflitos com motociclistas. “O ciclista fica bem à direita e quem passa paralelo a ele é o veículo (automóvel). Então, um ou outro motociclista que vai fazer conversão à direita nas vias transversais avança na ciclofaixa, mas sem grandes problemas”, explica.

Alexandre diz que a estrutura foi implantada seguindo os padrões de sinalização de solo e não deixa dúvidas sobre quem pode trafegar ali. “A ciclofaixa está bem visível, não tem por que dizer que não viu que não sabia”, atesta em entrevista realizada via internet.

A culpa nos óbitos

Na visão do motoboy Samuel Almeida, de 34 anos, que aguarda um pedido de comida na frente de uma dark kitchen instalada no número 2.807 da avenida,  ali não é lugar de ciclofaixa, pois o estreitamento da via diminui o corredor entre carros por onde ele e outros profissionais “desenrolam” o serviço.  “A gente não pode ficar parado no trânsito que nem carro e tem que ir para um lado ou para outro e acaba indo para o corredor de ônibus, que não é permitido”, diz. Ele afirma evitar invadir a ciclofaixa “pois a multa é muito cara”.

Samuel faz coro com o SindimotoSP, sindicato que representa uma parte dos trabalhadores em motofretes. A entidade colocou na conta da ciclofaixa a morte de dois motociclistas que ocorreram no primeiro semestre deste ano, em sinistros envolvendo ônibus e caminhão.  Além de enviar uma carta pedindo ao secretário de Mobilidade da Capital, Levi Oliveira, para retirar a ciclofaixa, integrantes do sindicato ocuparam uma das faixas da avenida em uma noite de julho de 2021 para protestar. Eles querem de volta o 1,2 metro de pista perdidos para a ciclofaixa, o que diminui o corredor usado para trafegar entre os carros quando o tráfego está congestionado.

Já Gladson Vieira Oliveira, outro moto-entregador que trabalha na região, entende que é possível respeitar o espaço do ciclista e manter a qualidade do serviço.  Ele diz que a ciclofaixa não mudou a forma como ele dirige na avenida. “Ela não atrapalha em nada. Senti pouca coisa, mais lá em cima, onde deu uma estreitadinha, mas os motoristas sempre abrem (espaço) e a gente passa”, explica. E revela que nunca invadiu a ciclofaixa. “É o espaço deles! Cada um tem que ter seu espaço, ainda mais com essa pandemia, né?” Questiona.

O motoboy Gladson: espaço para todo mundo

Pedestres mais seguras

Além da pandemia de Covid-19, que retirou muita gente das ruas em São Paulo, a ciclofaixa pode ter contribuído para manter a avenida Rebouças menos letal para pedestres. Além de não registrar óbitos desde 2018, o número de atropelamentos não-fatais caíram drasticamente, aponta o Infosiga.  De 19, em 2019, para oito casos até outubro de 2021.

Já o relatório de sinistros de trânsito da CET, produzido com dados de 2020, mostra a avenida como cenário de seis atropelamentos de pedestres e 22 pessoas ocupantes de veículo feridas e aponta, ainda, que o trecho perto da rua Cônego Eugênio Leite foi o vigésimo cruzamento mais perigoso da cidade – com quatro vítimas não-fatais em 3 sinistros.

Luane Brandão, profissional de e-commerce que trabalha na região, notou diferença após a instalação da ciclofaixa. “Eu achei que melhorou bastante, pois o pessoal respeita um pouco mais, né?”, disse ela enquanto aguardava o semáforo ficar verde para cruzar a via para o outro lado e acessar o ponto de ônibus.

Luane Brandão: mais segurança na travessia

Letícia Sabino, presidenta da SampaPé!, diz que uma ciclofaixa junto à calçada, como a da Rebouças, vai além de garantir mais proteção para pedestres, pois promovem sociabilidade entre os dois modos ativos. “Quem está numa bicicleta pode parar e ajudar um pedestre, sendo que o motorista de um carro jamais vai fazer isso”.

 

Tal como Suzana, Letícia não vê a ciclofaixa da Rebouças com potencial para estimular o uso dela por ciclistas novatas. Ela mesma, quando precisa circular por Pinheiros e Jardins, procura usar as ruas adjacentes, tanto por não se sentir segura em relação ao convívio com carros que passam, quanto “por não ser nada agradável pedalar em meio à poluição atmosférica e sonora provocada pelo trânsito pesado”.

Todavia, Letícia percebe que mesmo não sendo ideal, a estrutura está enviando um recado para motoristas. “Ela faz parte da construção de uma solução para ir desacelerando a cidade, pois passa uma mensagem de que há outras formas de deslocar que são prioritárias”, opina.

Projeto antigo

A ciclofaixa da Rebouças é um projeto antigo nas pranchetas da CET e reivindicação recorrente de cicloativistas.  O trajeto foi discutido pela população em uma audiência pública promovida na Subprefeitura de Pinheiros,em 2019, e custou 1,5 milhão de reais aos cofres da Prefeitura de São Paulo, um dinheiro obtido via Operação Consorciada Faria Lima, que permite às construtoras construírem prédios mais altos, desde que paguem mais por isso.

No entanto, a participação pública na definição da estrutura não foi suficiente para receber elogios da Gazeta de Pinheiros, um dos mais antigos jornais de bairro de São Paulo. Em 10 de dezembro de 2020, o jornal publicou um texto intitulado “Ciclovia da Rebouças é entregue, apesar dos protestos e perigo para todos”. Sem informar fontes, o jornal diz que apenas 120 ciclistas usavam a avenida

Bikes compartilhadas

Dentre as dezenas de ciclistas que passaram por esta reportagem durante a ensolarada sexta-feira da primavera paulistana, uma boa parte pedalava bicicletas alugadas do Bike Sampa e carregava sacolas de aplicativos de entrega. A Tembici, empresa que realiza a operação de aluguel desse sistema de empréstimo, informou que a ciclofaixa da Rebouças motivou realocações de algumas estações instaladas em ruas paralelas e transversais para se aproximarem à nova estrutura.

Perguntada sobre o aumento no número de viagens por causa da ciclofaixa, a Tembici disse que fez um estudo considerando os períodos de junho de 2020 e abril de 2021 e também entre os meses de dezembro de 2019 e fevereiro de 2020. “Fomos comparando os resultados mês a mês e concluímos que houve aumento dos pares de origem e destino das estações nas proximidades”, explica a empresa.

 

*Reportagem de Giuliana Pompeu. Texto e fotos de Rogério Viduedo

**Material produzido com incentivo do Programa de Jornalismo em Segurança Viária do Centro Internacional de Jornalistas – ICFJ em conjunto com a Organização Mundial da Saúde – OMS

(#Envolverde)