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Al Assad ainda respira no distante nordeste

Hafez al Assad, pai do atual presidente da Síria, saúda desde o centro de Qamishli. Foto: Karlos Zurutuza/IPS
Hafez al Assad, pai do atual presidente da Síria, saúda desde o centro de Qamishli. Foto: Karlos Zurutuza/IPS

 

Qamishli, Síria, 10/10/2013 – “Toda a região está sob controle, mas é preciso ter cuidado no centro da cidade”. O conselho deste miliciano curdo à entrada de Qamishli, 600 quilômetros a nordeste de Damasco, indica brechas inesperadas na relativa estabilidade do Curdistão sírio. Literalmente incrustada contra a cerca que serve de fronteira com a Turquia, essa cidade de 200 mil habitantes é conhecida por suas enormes procissões na Semana Santa, que coincidem quase no tempo com a também maciça celebração do Newroz, o ano novo curdo e persa.

Qamishli é o tubo de ensaio da convivência de assírios, armênios, curdos e árabes, mas também a proveta na que se testaram os antecedentes do levante curdo. Era março de 2004, quando uma partida de futebol no estádio local derivou em uma sonora reivindicação nacionalista curda, que foi sufocada com dezenas de mortos pela polícia. Após a rebelião de 2011 contra o governo da Síria, os curdos apostaram em uma neutralidade que os levou a enfrentar praticamente a todos.

Apesar das dificuldades, em julho de 2012 conseguiram assumir o controle das áreas onde são maioria. Ou de quase todas, já que o governo sírio de Bashar al Assad ainda controla o centro de Qamishli e o aeroporto da cidade. Um voo diário a liga com a castigada capital do país.

“São 600 quilômetros entre os dois pontos e as estradas já não são opção”, garante Hamid, antigo comerciante de frango que trocou seu negócio pelo de gasolina, muito mais lucrativo. Ele a vende em um pequeno posto na entrada oeste da cidade. “Recebo diariamente gasolina vinda de Banyas, na costa mediterrânea. São tantos os controles de todas as facções aos quais é preciso pagar uma taxa que o preço da gasolina passou das 15 libras sírias (US$ 0,14) o litro para 300 libras sírias.

Não é de estranhar que os moradores locais tenham tirado o pó de suas bicicletas e, embora o preço dos demais produtos de consumo não tenha se multiplicado por 200, a população se vê estrangulada pelo custo de vida. “Meu salário é de 20 mil libras (US$ 150). Antes da guerra eu vivia com todas as comodidades, mas agora mal consigo manter a família”, disse o professor primário Qadir. “Não quero ir embora, mas é possível que não tenha outra solução”, afirmou à IPS.

Um dia a janela de uma loja permanece fechada, o correio não chega nem os resultados dos exames. São sinais quase inequívocos de que mais uma família fugiu para engrossar as filas dos 200 mil refugiados que, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), existem hoje nos cinco campos montados para eles no Curdistão iraquiano.

Falta luz, a água escasseia e a telefonia móvel se mantém unicamente graças à proximidade com a fronteira turca. Praticamente todos os sírios do norte são usuários da telefonia móvel turca embora uma mensagem automática do Ministério do Turismo recorde, de tempos em tempos, que a Síria até há pouco tempo se orgulhou do turismo e de telecomunicações fluidas. “Ligue para 137 para informação turística ou reclamações”, diz um anúncio.

“Ainda assim não podemos nos queixar. Perdemos muito, mas também conseguimos avanços inéditos”, destacou Hozan, de 20 anos, que espera a guerra acabar para terminar seus estudos de engenharia civil. Enquanto isso, colabora na edição de um jornal local curdo, uma língua proibida até há pouco na Síria que, como disse, seu pai lhe ensinou a escrever quando criança e em segredo.

Outros êxitos da revolução “paralela” dos curdos passam por escolas em sua língua, centros sociais e de apoio à mulher bem como uma gestão que inclui desde o aparelho político e militar até a coleta de lixo, embora muitas vezes este acabe queimando no leito do rio Jaghjaghah, que divide a cidade de norte a sul. Se tudo funciona, mais ou menos, é graças ao trabalho de um autêntico exército de voluntários, como os que dirige Hashim Mohammad, chefe da Asayish, a polícia curda.

Esse antigo combatente do Partido dos Trabalhadores do Curdistão explicou à IPS que conta com quatro mil homens e mulheres sob seu comando. Inclusive chega a reconhecer as denúncias de abusos contra prisioneiros por parte de alguns deles. “Houve alguns casos no começo da revolução. Era uma situação completamente nova para todos e erros foram cometidos”, disse Mohammad, acrescentando que hoje em dia é “impensável”.

A existência de um posto de controle governamental a poucos metros daqui alimenta os rumores sobre um suposto pacto secreto entre Assad e o partido da União Democrática (PYD), a agrupação política dominante entre os curdos. Membros destacados do PYD negaram repetidamente à IPS tais acusações, um discurso que Mohammad assina embaixo. “Eles não entram em nossa zona nem nós na deles. Não nos coordenamos, apenas nos ignoramos”, afirmou.

Certo ou não, Assad continua saldando sorridente desde um mural no prédio dos correios de Qamishli. A poucos metros, Hafez al Assad, falecido pai do atual governante, desprega uma bandeira síria desde a escultura que domina a praça principal do centro da cidade. Dali, alguns milicianos encapuzados e vestidos de negro seguem em fila pela avenida em direção a uma caminhonete armada com artilharia e pintada com a bandeira do país.

“São ‘sabihas’, civis aos quais o regime pagou e armou no começo da revolução”, explicou Edmon, um cristão local próximo da oposição ao governo sírio. “Na fale com eles, não os olhe nem leve sua câmera à vista”, aconselhou. Embora não haja um posto de controle fixo, uma revista inesperada pode causar problemas a um jornalista que cruzou esta parte do país com o conhecimento dos curdos, mas não de Damasco.

Deixando para trás a praça principal, os policiais de trânsito descansam em suas guaritas pintadas com a bandeira síria. Os pontos de venda do bazar estão cheios de produtos e pessoas e nas doçarias continuam sendo vendidos os doces locais de mel e amêndoas. “Este homem que acaba de nos servir é irmão de um conhecido torturador do regime em Alepo. Aqui todos sabemos quem é quem, mas ninguém fala de política. Ninguém quer problemas”, enfatizou Edmon. Envolverde/IPS