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Os furacões não trouxeram a fome

A produção de milho se ressente em várias regiões do México. Espigas em um depósito camponês de Yaluma, Chiapas. Foto: Mauricio Ramos/IPS
A produção de milho se ressente em várias regiões do México. Espigas em um depósito camponês de Yaluma, Chiapas. Foto: Mauricio Ramos/IPS

 

Cidade do México, México, 15/10/2013 – Um mês depois que os furacões Ingrid e Manuel causaram no México a maior destruição provocada por um fenômeno natural em 30 anos, se impõe outra: a fome em comunidades supostamente atendidas por um programa rural de abastecimento de alimentos. As histórias se repetem nos 14 municípios da serra do Estado de Guerrero, segundo testemunhos de pessoas que chegaram às cabeceiras municipais para pedir socorro, como os três homens da comunidade Los Laureles que caminharam três dias e cruzaram rios usando cordas para chegarem a Coyuca.

“Precisamos de alimentos, porque acabou tudo, não temos o que comer”, contou um deles à IPS, Gregório Angulo, que chegou a pedir um helicóptero para transportar idosos e grávidas. Guerrero é o Estado mais afetado pelo impacto combinado de dois furacões quase simultâneos: Ingrid, no Golfo do México, no Oceano Atlântico, entre 12 e 17 de setembro, e Manuel, que se formou no dia 13 e se dissipou no dia 20 do mesmo mês no Pacífico.

“A fome se instalou”, afirmou o presidente da Confederação Nacional dos Conselhos Comunitários de Abasto, Porfirio González Cortés, a um jornal do Estado de Oaxaca, o segundo mais prejudicado. Com dezenas de estradas federais interrompidas, contar com alimentos locais e a baixo preço é crucial nesse país de 118 milhões de habitantes. Para isso, foi criada na década de 1970 a empresa estatal Diconsa (Distribuidora Conasupo Sociedade Anônima).

Por meio de uma rede com pouco mais de 25 mil lojas destinadas a atender comunidades marginalizadas de menos de 2.500 habitantes, a Diconsa deveria oferecer uma cesta básica de 22 produtos, como milho, feijão, arroz, açúcar, óleo e macarrão, a preços subsidiados. Durante anos esse sistema cuidou de regular o mercado nas regiões de maior pobreza. Durante as inundações de 1999, por exemplo, garantiu o abastecimento das comunidades isoladas.

Contudo, nos últimos 15 anos foi perdendo capacidade operacional e orçamento. Uma avaliação do desempenho da Diconsa, realizada este ano pelo Coneval, um órgão público e autônomo, encontrou “problemas de abastecimento regular e permanente nas lojas”. Além disso, em 10% das localidades rurais atendidas, essas lojas eram o único lugar onde conseguir alimentos e só um terço de todos os locais contavam com os 22 produtos previstos.

Entre 1998 e 1999, diminuiu pela metade o orçamento federal para todos os programas alimentares, incluindo Diconsa, Liconsa (sistema de distribuição de leite) e Fidelist (subsídio para a tortilha de milho, já desparecido). Em 2000, as autoridades quiseram eliminar completamente o subsídio à Diconsa, mas uma forte mobilização dos conselhos comunitários impediu que isso acontecesse.

Nessa época já se percebia que o orçamento, de US$ 41 milhões, apenas cobria os custos de operação. Este ano foram destinados à Diconsa apenas US$ 14 milhões, segundo informação do Orçamento de Gastos 2013. Isso cria outros problemas. A cesta subsidiada de 22 produtos custa cerca de 220 pesos (quase US$ 20), enquanto em uma loja qualquer ou supermercado pode ser adquirida por entre 230 e 330 pesos.

Também há inúmeras denúncias de que as lojas da Diconsa vendem outros produtos, inclusive alimentos “não saudáveis”, pelo mesmo preço, ou mais caros, que em qualquer outro comércio. O sistema aproveita muito pouco a pequena agricultura local e depende de uma cara distribuição centralizada nesse extenso país de geografia acidentada. Muitos de seus alimentos são importados. O México é o segundo maior importador de alimentos do mundo, depois do Japão, diz a Associação Nacional de Empresas Comerciantes de Produtores do Campo.

Esse país, que pertence ao exclusivo clube da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico, tinha no ano passado 27,4 milhões de pessoas com carências alimentares, segundo dados oficiais. Quase 14 em cada cem alunos pré-escolares têm baixa estatura para a idade, sinal de desnutrição crônica. E, entre os indígenas, esse problema afeta 33 em cada cem crianças.

Em Guerrero, María Natividad economizou até o último centavo em julho e agosto. Já tinha uma boa quantia e, como faz todos os anos, gastou tudo em carne, cerveja e Coca-Cola, suficientes para encher duas geladeiras. Mas nada disso era para seu consumo. Com um pouco de sorte, a venda do prolongado fim de semana do Dia da Independência (16 de setembro) lhe renderia o suficiente para aguentar até o Natal. Sua pequena casa de dois andares fica na ribeira do rio Azul, que margeia Santa Fé, o centro turístico mais importante de Guerrero.

Na madrugada do dia 15, o Azul transbordou em minutos e chegou quase cem metros terra adentro. A casa de Natividad ficou quase toda submersa, e quando a água baixou, uma mistura de lama e lixo enchia completamente o andar de baixo. Quase um mês depois, sua única fonte de renda desapareceu e, embora o balneário seja o principal sustento de todo o povo, as autoridades não atendem suas petições, pois como centro turístico figura nos últimos lugares das urgências.

Natividad é uma das milhares de pessoas em Guerrero que não recebe ajuda, nem dinheiro, nem comida. “Ninguém chegou” a Santa Fé, disse à IPS. As inundações danificaram meio milhão de hectares cultivados. A devastação trouxe altas súbitas nos preços de limão, cebola, feijão, milho e tomate. Também morreram 157 pessoas, há várias dezenas de desaparecidos, meio milhão de prejudicados e 1,2 milhão de casas danificadas.

Em janeiro de 2007, estourou no México a crise da tortilha de milho, alimento básico e ancestral, quando o preço completou um ciclo de 40% de aumento em menos de um ano, resultado de operações especulativas das empresas intermediárias. Houve protestos e distúrbios.

Pouco depois, uma comissão da Câmara de Deputados analisou as causas dessa crise para concluir que, em uma década, o país perdera “um importante segmento de sua soberania alimentar, teve atraso na produção doméstica de grãos básicos e aumentou sua dependência das importações para atender seu consumo interno. Além disso, o Estado entregou a comercialização e a distribuição interna e externa de alimentos a empresas estrangeiras transnacionais”.

O informe também destacava que, “se o governo federal pôde agir em defesa dos consumidores de milho em áreas rurais, foi graças ao fato de ainda operar a rede de abastecimento comunitário da Diconsa”, embora já com carências de “infraestrutura, instrumentos operacionais e logísticos para regular diretamente o mercado do milho-tortilha, como ocorria anteriormente”. Envolverde/IPS

* Com colaboração de Ximena Natera (Coyuca e Santa Fé, Guerrero).