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Lógica da Guerra Fria se consolida na Venezuela

Desfile pelo Dia do Exército da Venezuela. Foto: Ministério do Poder Popular para a Defesa
Desfile pelo Dia do Exército da Venezuela. Foto: Ministério do Poder Popular para a Defesa

Caracas, Venezuela, 24/10/2013 – O decreto do governo da Venezuela para controlar a informação e “a atividade inimiga interna e externa” apela para conceitos da doutrina de segurança nacional, assumida por várias décadas pelas ditaduras militares direitistas da América Latina. O presidente esquerdista Nicolás Maduro criou por esse decreto o Centro Estratégico de Segurança e Proteção da Pátria (Cesppa), que “solicitará, organizará, integrará e avaliará as informações de interesse para o nível estratégico da Nação, associadas à atividade inimiga interna e externa, provenientes de todos os órgãos de segurança e inteligência do Estado e de outras entidades públicas e privadas”.

Essas ações acontecerão “de acordo com requisição da Direção Político-Militar da Revolução Bolivariana” (figura que não existe na Constituição nem nas leis que organizam o Estado), e as instituições públicas e privadas “estarão obrigadas a fornecer toda informação requerida pelo Cesppa no exercício de suas funções”, diz o decreto. O órgão também “poderá declarar o caráter de reservada, classificada ou de divulgação limitada de qualquer informação, fato ou circunstância, que no cumprimento de suas funções tenha conhecimento ou seja tramitado no Cesppa”.

Como primeiro chefe do Cesppa, Maduro designou o major-general Gustavo González López, ex-comandante da Milícia Bolivariana, uma força criada pelo falecido presidente Hugo Chávez (1999-2013) para apoiar os trabalhos de defesa interna do exército, marinha, aeronáutica e guarda nacional. O Cesppa “traz ressonâncias, tanto por seu caráter de potencial órgão censor como, mais grave ainda, de inteligência, orientado a controlar supostos inimigos internos, da doutrina de segurança nacional imperante na região nas décadas de 1970 e 1980”, indicou à IPS o especialista político argentino, Andrés Serbin.

Também “é altamente preocupante que sobre o Cesppa não se preveja nenhum tipo de controle pela sociedade ou por instituições civis, incluindo o parlamento, e que seu primeiro diretor seja um militar”, afirmou Serbin, que preside a Coordenadoria Regional de Pesquisas Econômicas e Sociais, fundada em Manágua em 1982 e que tem sua sede em Buenos Aires.

A doutrina da segurança nacional “manteve a ideia de que a partir da segurança do Estado se garante a da sociedade. Uma de suas principais inovações foi considerar que para conseguir esse objetivo seja necessário o controle militar do Estado. Outra, a substituição do inimigo externo pelo inimigo interno”, pontuou Francisco Leal, professor titular de ciências políticas na colombiana Universidade de Los Andes.

Essa doutrina foi parte da estratégia norte-americana para combater o comunismo na América Latina depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), segundo o historiador Edgar Velásquez, da também colombiana Universidade do Cauca. Por meio dela, Washington “consolidou sua dominação sobre os países da América Latina, enfrentou a Guerra Fria, fixou tarefas específicas para as forças armadas e estimulou um pensamento político de direita em países da região”, disse Velásquez no artigo História da Doutrina da Segurança Nacional, publicado em 2004 na revista Estudos Latino-Americanos da Universidade de Nariño, na Colômbia.

Uma de suas características foi a instrução repressiva que militares e policiais latino-americanos receberam na Escola das Américas, que os Estados Unidos tinham Panamá. A onda democratizante que se abriu na região a partir da segunda metade da década de 1980 colocou essa doutrina em xeque. Porém, não houve reformas profundas das forças armadas. E, novamente por ação de Washington, essas continuam se ocupando da segurança interna em vários países, desta vez contra o onipresente inimigo do narcotráfico e da criminalidade.

Nesse rumo “subsiste o risco de que, de uma maneira subterrânea e não visível, ressurja a doutrina da segurança nacional no acontecer latino-americano”, afirma um ensaio sobre seu impacto no direito penal da região, escrito pelo jurista Mario Zamora, atual ministro de Segurança Pública da Costa Rica. Sob o guarda-chuva dessa doutrina, militares à frente de ditaduras direitistas reprimiram como “inimigos internos” seus opositores políticos, com dezenas de milhares de mortos, desaparecidos e torturados em vários países.

A Venezuela se manteve alheia a essas correntes. E desde 1999 tem três governos que se dizem de esquerda e em busca de um socialismo do século 21, primeiro com Chávez e agora com Maduro. A criação do Cesppa ocorre em um contexto de reiteradas denúncias de autoridades sobre supostos atos de sabotagem no sistema elétrico e na economia. No dia 30 de setembro, Maduro ordenou a expulsão de três diplomatas norte-americanos acusados de ligação com esses fatos e com a “extrema direita” venezuelana.

Porta-vozes do governo e do governante Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV) mantêm silêncio sobre o Cesppa desde a publicação do decreto, no dia 7. A IPS consultou, sem êxito, vários parlamentares do PSUV, incluídos dois integrantes da Comissão do Poder Popular e Meios de Comunicação, que se esquivaram de comentar o decreto até “estudá-lo com maior profundidade”.

O Cesppa se define como “órgão reitor e articulador das políticas de trabalho das instituições responsáveis pela Segurança, Defesa, Inteligência e Ordem Interna, Relações Exteriores e outras que tenham impacto na segurança da Pátria, a fim de fornecer informação oportuna e de qualidade ao presidente da República”. Para Rocío San Miguel, diretora do não governamental Controle Cidadão para a Segurança, a Defesa e a Força Armada, “esse órgão tem entre seus objetivos converter alguns cidadãos em vigilantes e ‘sapos’ (delatores) dos outros”.

Rocío destacou que “todas as entidades e pessoas ficam obrigadas a fornecer a informação que o Cesppa requerer sobre praticamente qualquer assunto. E o decreto não reparou em diretrizes constitucionais, como a de que só uma lei pode estabelecer normas para a classificação e reserva de documentos oficiais”. A Aliança pela Liberdade de Expressão, que reúne organizações de jornalistas e ativistas pelos direitos civis, pediu “a revogação imediata do decreto, por contradizer as garantias constitucionais de direito à informação e a proibição da censura”.

Para Carlos Correa, coordenador da Espaço Público, “o mais grave é a noção de inimigo interno, pois sob esse rótulo ficaria qualquer venezuelano crítico ou opositor do governo”. Essa definição “antes era usada como expressão retórica com uma lógica belicista. Agora aparece em um decreto presidencial, de maneira normativa”, enfatizou. Envolverde/IPS