Província de Idlib, Síria, 22/11/2013 – Crescem os temores de que os tribunais presididos por clérigos muçulmanos em muitas áreas rebeldes da Síria sejam o prelúdio de um sistema judicial similar ao adotado pelo movimento islâmico Talibã no Afeganistão. Muitos na Síria afirmam que esses tribunais são a única opção viável nas atuais circunstâncias, e que não devem ser confundidos com uma de justiça muito mais radical que tenta estabelecer o Estado Islâmico do Iraque e o Levante, filiado à rede Al Qaeda, nas áreas sob seu controle. Também há os que temem a imposição de justiça ao estilo talibã.
Os juízes formados sob o regime de Bashar al Assad ainda são vistos com desconfiança, mesmo quando tenham expressado seu apoio à causa rebelde, explicaram à IPS moradores de vários povoados na província de Idlib, no noroeste sírio. Por outro lado, muitos clérigos muçulmanos que dirigem esses novos tribunais estiveram por um tempo na prisão, o que agora lhes dá certo grau de “legitimidade” aos olhos do público e dos combatentes.
Dirigentes de muitas das grandes facções rebeldes, como Suqour al-Sham, Al-Tawheed e as Brigadas Ahrar Ash-Sham, estiveram na prisão de Sednayah, perto de Damasco, detidos com outros líderes religiosos. O fato de terem sido prisioneiros do regime de Assad é hoje uma evidência de postura pró-revolucionária.
O clérigo e xeque Hamdan Jattab, que preside um tribunal local com jurisdição em parte de Idlib, disse à IPS que não vê seu irmão há mais de 30 anos devido aos seus supostos vínculos com a Irmandade Muçulmana. Desde 1980, a lei síria estabelece a pena de morte para os membros desse grupo. Jattab acrescentou que, segundo a shariá (lei islâmica), “enquanto não tivermos presidente não se pode aplicar nenhuma sentença”, e as sentenças devem ser suspensas em tempos de beligerância.
No entanto, isso parece não se aplicar a certos “crimes de guerra” cometidos por combatentes nas atuais circunstâncias. Um palestino detido por pertencer a uma “shabiha”, milícias ligadas ao regime, e acusado de inúmeras violações e de assassinatos, foi executado por ordem de um tribunal rebelde de Bab al Hawa, perto da fronteira turca. A IPS havia entrevistado o acusado em setembro.
Maher, líder local da Suqour al-Sham, cujos homens detiveram e interrogaram o palestino antes de entregá-lo ao tribunal, disse que a maioria das prisões feitas pelos combatentes é por roubo. O líder rebelde recebeu a ordem de um tribunal islâmico local para acabar com a crescente anarquia e os saques cometidos por ladrões procedentes de uma área próxima controlada por clãs.
Maher disse que são comuns as sentenças entre seis meses e um ano de detenção em casos de roubo. Porém, quando se trata de enfrentamento entre clãs, os tribunais da shariá não intervêm, como tampouco os do regime de Assad, disse o xeque Aid Hussein, líder do clã Al Damaalja. Ele falou à IPS em uma de suas casas não longe de Ma’arrat an-Nu’man, cidade controlada pelos rebeldes mas destruída completamente por bombardeios do governo.
Hussein disse que o regime sempre permitiu aos clãs resolverem suas próprias disputas. Os anciãos e líderes tribais decidem os acordos e compensações em qualquer queixa. Muitos clérigos recorrem ao Código Árabe Modificado, inspirado na shariá e acordado pelos ministros da Justiça dos países da Liga Árabe em 1996.
Os que conhecem a fundo a shariá estão, em geral, acompanhados por advogados que trabalham como assessores legais nas áreas rebeldes. A “fiqh” (jurisprudência) islâmica foi a principal fonte das duas constituições introduzidas pela família Assad na Síria, em 1973 e 2012. Apenas os códigos penal e comercial têm caráter laico, enquanto o civil se baseia na shariá.
As mulheres estão sempre em desvantagem na lei síria, pois o maior peso das normas islâmicas cai sobre elas. Por exemplo, se um violador se casa com a vítima, fica isento de culpa. Um homem que mata uma mulher de sua família pode ter sua pena reduzida se demonstrar que se tratou de um “assassinato de honra”. E a lei síria considera as mulheres legalmente dependentes de seus pais e maridos.
As sírias também estão excluídas dos conselhos administrativos civis, bem como dos tribunais islâmicos e tribais. Embora também fossem discriminadas no regime de Assad, havia muitas advogadas em todo o país antes do levante de 2011.
Heba, advogada dedicada a documentar a tortura de mulheres e meninas detidas e que informou um ataque químico na cidade de Saraqeb, contou à IPS que suas colegas “nunca eram promovidas, ficavam no mesmo posto por décadas, enquanto os homens progrediam”. Contudo, “não precisamos de um novo sistema legal”, afirmou essa advogada, agora radicada na região turca de Hatay para sua própria segurança.
“O problema nunca foi o sistema legal. Foram as prisões arbitrárias, a tortura sistemática aplicada pelo regime e a corrupção”, disse essa mulher que respeita o hiyab (código de vestimenta feminino muçulmano). O que a comunidade internacional não quer reconhecer é que a shariá não foi responsável por muitas das atrocidades cometidas na Síria, afirmou Heba, citando o caso de uma menina que teve amputadas as pernas e que foi violada reiteradamente enquanto esteve detida.
Muitos rebeldes consideram que o sistema judicial islâmico é muito mais justo do que o laico, já que parte da base de que “todos somos iguais perante Deus”. “Eu, simplesmente, quero ser tratado com dignidade”, disse à IPS um combatente. “O Islã é democracia. Sob o regime, tudo se reduzia ao dinheiro. Inclusive se podia pagar para que um homicídio fosse declarado como em defesa própria”, destacou. Envolverde/IPS