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“As mulheres líbias não passam de pilhagem de guerra”

 Aicha Almagrabi, escritora e ativista pelos direitos da mulher na Líbia. Foto: Karlos Zurutuza/IPS

Aicha Almagrabi, escritora e ativista pelos direitos da mulher na Líbia. Foto: Karlos Zurutuza/IPS

 

Trípoli, Líbia, 12/12/2013 – A Líbia estaria se voltando para um modelo “afegão” quanto aos direitos da população feminina, se não forem impostas mudanças imediatas, afirmou em entrevista à IPS a escritora e ativista feminista Aicha Almagrabi. As mulheres “que reclamam seus direitos são constantemente insultadas, hostilizadas e ameaçadas”, contou essa professora universitária de 57 anos, que também preside a Organização para a Defesa da Liberdade de Pensamento, em entrevista concedida em sua residência em Trípoli.

Almagrabi, que estudou filosofia em seu país e na França, é autora de quatro livros de poesia, uma novela e uma obra teatral, publicadas apenas em árabe. Atualmente trabalha em outros três livros, tarefa que divide com seu ativismo e as aulas que dá de filosofia e artes plásticas.

IPS: Em outubro completou dois anos do assassinato de Muammar Gadafi. O que mudou para as mulheres líbias desde então?

AICHA ALMAGRABI: As coisas, sem dúvida, mudaram, mas não para melhor. Perdemos os poucos direitos que tínhamos. Por exemplo, a bigamia continua habitual na Líbia, mas, pelo menos, o homem precisava da aprovação de sua mulher para ter um segundo casamento, isso no governo de Gadafi. Agora, isso já não é necessário. Na verdade, Mahmud Jibril (primeiro-ministro do Conselho Nacional de Transição em 2011), em seu famoso discurso após o final da guerra, mencionou a revisão da lei sobre a poligamia, inclusive antes de falar da reconstrução do país e de sua sociedade civil. Mudanças? Hoje as mulheres líbias não são mais do que pilhagem de guerra. Em nível de rua, as que reclamam seus direitos são constantemente insultadas, hostilizadas e ameaçadas. Fomos parte da revolução, tivemos nossas próprias mártires, mas, ao contrário dos homens, não conseguimos nenhum benefício político de tudo isso.

IPS: Mas vários cargos do governo são ocupados por mulheres…

AA: Verdade, mas também é certo que podem conservar seus cargos apenas porque foram utilizadas como meras propagandas eleitorais. Sem ir mais longe, no chamado Comitê dos 60 (encarregado de redigir a nova Constituição) há apenas seis lugares reservados para mulheres. Inclusive um membro do Congresso Geral da Nação (legislativo) pediu medidas para evitar que homens e mulheres compartilhem o mesmo espaço durante as reuniões. Alguns números também são eloquentes: 90% dos professores na Líbia são mulheres, mas apenas 2% delas participam da tomada de decisões.

IPS: Não lhe parece que agora na Líbia o grande mufti Sadek al Ghariani, a máxima autoridade religiosa, tem mais peso do que os dirigentes políticos?

AA: O mufti ostenta a autoridade religiosa, mas na Líbia esta é apoiada pelo aparato político e militar. Busca-se que a shariá (lei islâmica) seja o núcleo do código penal e da futura Constituição. O que perseguem é institucionalizar sua própria interpretação do Alcorão, algo que é muito mais perigoso do que esse livro em si mesmo. Além disso, existe um debate sobre a shariá, mas frequentemente esquecemos que há muitas versões da mesma. Queremos a iraniana? Talvez a afegã? Ou, ainda, a marroquina? Um de seus objetivos principais é controlar as mulheres por meio de sua própria visão do Alcorão. Não me canso de insistir que é prioritário separar religião e política. Infelizmente, as meninas na escola já são obrigadas a usar o hijab (véu islâmico), e o mufti também está fazendo uma campanha para que o restante das mulheres sempre cubra seu cabelo. Sou professora na Universidade de Zaytuna (em Trípoli) e sou a única que não cobre o cabelo. Todas as minhas colegas usam o hijab, ou mesmo o niqab (lenço que cobre o rosto). Seu número não aumenta por lei, mas a própria pressão do grupo se encarrega disso.

IPS: O que sabe sobre os rumores de uma nova fatwa (decreto islâmico), que entraria em vigor em janeiro proibindo as mulheres de se deslocarem pelo país sem um muharram (acompanhante masculino)?

AA: Não me surpreende, absolutamente. Vivo fora da cidade e no dia 13 de fevereiro fui retida por uma hora e meia por um grupo de homens armados, quando ia para o trabalho, porque não tinha um muharram ao meu lado. Levei o caso aos meios de comunicação, e em 14 de março fizemos um protesto que chamamos de “a marcha pela dignidade da mulher”. Como de costume, nos insultaram e ameaçaram, e algumas companheiras chegaram a ser golpeadas.

IPS: A crescente violência é o problema mais grave para as mulheres líbias?

AA: É só um entre muitos. As mulheres na Líbia suportam a carga familiar em toda sua dimensão, as ruas são inseguras para nós e sofremos muitos assaltos e inclusive sequestros. Por outro lado, ainda não há vontade de garantir os direitos das mulheres na próxima Constituição. A cada vez menor participação na sociedade civil também é muito preocupante. Começamos muito fortes, mas a crescente pressão fez cair nossa presença, progressivamente. Hoje em dia contemplamos com assombro como tentam transformar nossos ideais de liberdade e justiça com fatwas e discursos religiosos que têm uma forte influência nas novas gerações. Até mesmo Gadafi mudou seu discurso para um mais religioso, na década de 1980, quando se deu conta de que o Islã podia ser uma ferramenta eficaz para obter maior influência sobre o povo. Porém, a falta de direitos e liberdades durante seu governo levou muitos a posições extremas, como as da Irmandade Muçulmana e dos jihadistas.

IPS: O que pode ajudar a desbloquear uma conjuntura tão difícil para as mulheres líbias?

AA: Inclusive no improvável caso de, finalmente, termos uma Constituição baseada nos direitos humanos, ainda será necessário realizar outra revolução para mudar a mentalidade das mulheres líbias. Mas, antes de redigir a Constituição, é fundamental acabar com a impunidade das milícias, bem como a de todos os grupos armados que atuam à margem do exército e da polícia. Não havendo mudanças imediatas, nos veremos destinadas a enfrentar um modelo “afegão” no tocante aos direitos da mulher. Envolverde/IPS