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Bachelet diante de desafios dentro de sua própria coalizão

Michelle Bachelet, no dia seguinte ao de sua vitória, em uma reunião com os representantes da Nova Maioria. Foto: Michjellebachelet.cl.
Michelle Bachelet, no dia seguinte ao de sua vitória, em uma reunião com os representantes da Nova Maioria. Foto: Michjellebachelet.cl.

 

Santiago, Chile, 17/12/2013 – A promessa de reformas estruturais que modifiquem o sistema político herdado da ditadura e corrijam o abismo de desigualdade no Chile levaram a socialista Michelle Bachelet a um contundente triunfo no segundo turno, no dia 15. Entretanto, esta pediatra de 62 anos, especialista em saúde pública e que já governou o país entre 2006 e 2010, deverá atender não apenas as demandas que a sociedade vem pedindo nas ruas, mas também as enormes diferenças que existem dentro de sua própria coalizão.

Na Nova Maioria, a renovada coalizão com que Bachelet se apresentou nas urnas, incorpora o Partido Comunista (PC) e grupos menores da Concertação de centro-esquerda que governou o Chile desde 1990, quando se pôs fim à ditadura de 17 anos do falecido general Augusto Pinochet. Na Concertação tinham primazia a Democracia Cristã (DC) e o Partido Socialista, da presidente eleita.

Assuntos com grande peso ideológico que Bachelet prometeu estabelecer, como a despenalização do aborto terapêutico ou uma Lei de Culto que iguale e limite o papel das igrejas, a obrigarão a uma alta performance de mediação e liderança entre seus aliados, de futuro incerto. Bachelet obteve uma esmagadora vitória diante da direitista Evelyn Matthei, com 62,15% dos votos contra 37,84% e é a primeira governante reeleita desde 1932, obtendo, também, a maior votação desde a restauração da democracia.

Em seu programa de governo Bachelet promete reformar a Constituição pinochetista de 1981, educação gratuita e de qualidade para o nível superior, e uma reforma tributária, fundamentada no aumento de impostos para as grandes empresas. São desejos de mudança que foram impulsionados por maciços protestos estudantis em 2011, que puseram em xeque o governo do direitista Sebatián Piñera, e que se estenderam a outros setores.

Por trás se esconde uma realidade que não basta para cobrir os bons dados econômicos, como um crescimento anual do produto interno bruto de 5,5% ou desemprego abaixo dos 6% da população economicamente ativa. Neste país, de 17 milhões de habitantes, duas em cada três famílias vivem com menos de US$ 1.200 por mês e estão altamente endividadas. Além disso, metade dos trabalhadores ganha menos de US$ 500 mensais, quantia que não dá para cobrir as necessidades básicas em um país onde, segundo dados não oficiais, a cesta de alimentos essenciais custa US$ 245. Em contraste, as 4.500 famílias mais ricas têm renda mensal superior a US$ 40 mil.

Essa desigualdade gerou nos últimos anos enorme descontentamento em amplas camadas sociais prejudicadas, que nessa ocasião se expressou no não comparecimento às urnas, ofuscando a vitória de Bachelet. No primeiro turno, em 17 de novembro, metade dos aptos a votar se abstiveram, e no segundo turno a abstenção aumentou. Compareceram às urnas apenas 5,5 milhões dos 13,5 milhões de eleitores, 59% ficaram em casa, um recorde histórico.

A presidente eleita, que iniciará seu segundo mandato em 11 de março de 2014, contará com maioria absoluta nas duas casas do Congresso, após a vitória de sua coalizão em novembro, quando elegeu 21 dos 38 senadores e 67 dos 120 deputados. Contudo, posturas opostas dentro de sua coalizão antecipam que algumas reformas não terão uma tramitação rápida nem fácil. A isso se somará a maioria qualificada exigida para as mudanças constitucionais.

O analista político Guillermo Holzmann disse à IPS que “Bachelet deve definir o tipo de relação que terá com os partidos políticos e qual espaço dará a cada um, e isso refletirá na formação de seu gabinete”. Quanto às diferenças, Holzmann acredita que Bachelet poderá assumir um papel mediador dentro da Nova Maioria, ou “exercer uma condução que obrigue os partidos a se submeterem à sua decisão, deixando a responsabilidade da mediação nas mãos dos partidos políticos” da coalizão.

Isso será parte da gestão e estratégia de governo, acrescentou Holzmann, e por isso será tão importante o primeiro gabinete que Bachelet nomear e os sinais que der com ele. “Se a presidente optar por gente independente e apresentar um governo mais transversal, sua mensagem buscará a conexão com a quantidade de pessoas que não votaram”, pontuou. Nesse cenário, “dentro da coalizão teremos maior disposição para gerar um consenso ou uma coesão, onde o mais provável é que o PC não queira ser parte do problema, mas da solução”, acrescentou.

Para Holzmann, “o PC poderá decidir-se por obter cargos menores dentro do governo, que não sejam de tanta visibilidade, ainda que tenham muita influência”. Por outro lado, o analista Domingo Namuncura, do Barômetro de Política e Igualdade, prefere destacar que os partidos da Nova Maioria provêm da esquerda e da centro-esquerda e “confluem em uma proposta programática comum. Dessa forma, existe um primeiro sinal de adesão a esses princípios programáticos”.

Namuncura disse à IPS que as diferenças sobre como avançar no programa acordado serão resolvidas com debates internos da coalizão, e adiantou que uma das diferenças centrais poderia ocorrer na hora de definir o mecanismo para levar adiante a reforma constitucional, já que amplos setores do PC optariam por uma Assembleia Constituinte, à qual se opõe a DC.

Além das diferenças na coalizão de governo, Bachelet deverá lidar com a pressão dos movimentos sociais, que estarão atentos à concretização adequada e rápida de suas demandas. Ontem mesmo, a Confederação de Estudantes do Chile advertiu que não apoiará nenhuma reforma educacional no próximo governo se esta não for elaborada com a participação dos movimentos sociais. Enquanto os simpatizantes da próxima presidente ainda comemoravam, a Confederação anunciou novas manifestações para manter a pressão, e ressaltou que “vão cobrar” ex-dirigentes do movimento estudantil, como a comunista Camila Vallejo, eleita deputada.

“O novo governo deve buscar mecanismos que possam recolher essa diversidade de demandas que não estão sendo canalizadas pelo sistema, com respostas em um tempo prudente”, porque há uma sociedade que não parece disposta a esperar, alertou Holzmann. O desafio de Bachelet, definitivamente, será cumprir o compromisso que assumiu em seu site após sua vitória: “Começa o Chile de todos”. Envolverde/IPS