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Conflito pela terra em um dos maiores assentamentos da África

Esta zona do assentamento informal de Kibera foi uma das mais afetadas pelo enfrentamento tribal de 2007. Seus habitantes temem que a controvérsia pela propriedade da terra possa desatar violência de características semelhantes. Foto: Miriam Gathigah/IPS
Esta zona do assentamento informal de Kibera foi uma das mais afetadas pelo enfrentamento tribal de 2007. Seus habitantes temem que a controvérsia pela propriedade da terra possa desatar violência de características semelhantes. Foto: Miriam Gathigah/IPS

 

Nairóbi, Quênia, 7/1/2014 – A controvérsia sobre a propriedade da terra em Kibera, um assentamento informal desta capital e um dos maiores do seu tipo em toda a África, pode levar a atos de violência em sua população estimada em um milhão de pessoas.

Os núbios que vivem ali há mais de cem anos querem que Kibera fique registrada como território de sua comunidade, mas suas intenções se chocam com as de inúmeros quenianos que se assentaram na área nos últimos 60 anos. A comunidade núbia chegou pela primeira vez ao Quênia como soldados sudaneses do exército britânico no final do século 19, entretanto não foram reconhecidos como um grupo étnico oficial até o censo de 2009.

Não podendo voltar ao seu país após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o governo colonial instalou os soldados e suas famílias na periferia do sudoeste de Nairóbi. A terra onde foram assentados foi chamada de Kibra, uma aldeia que cresceu até se converter na atual Kibera. Desde então, os núbios reclamam a posse de Kibera mas não são reconhecidos legalmente como seus donos, e o território ainda pertence oficialmente ao Estado.

“Meu avô, Deyeb Aljab, foi um dos primeiros núbios a se instalar em Kibra”, contou Hussein Dong ‘, um locatário de Kibera. “Era dono de 0,6 hectare, mas nunca recebeu os títulos de propriedade”, acrescentou. A comunidade núbia está “preocupada pela crescente animosidade que sofre de parte das outras tribos porque o governo tem planos de nos entregar títulos de propriedade sobre 116 hectares”, ressaltou.

No entanto, muitos moradores garantem que não são contra a comunidade núbia possuir terras em Kibera e dizem se preocupar com suas próprias áreas. Gary Otieno, que vive em Makina, um dos 13 bairros do assentamento, disse à IPS que os moradores “querem que o governo compartilhe a terra de Kibera equitativamente entre todas as tribos que vivem aqui”.

“Alguns núbios já venderam suas casas para pessoas de outras comunidades”, disse Otieno. “Os novos donos viverão em casinhas flutuantes, uma vez que o terreno onde foram construídas tenha um título de propriedade que pertence a um núbio que já não está de posse da mesmas?”, perguntou.

Embora os números oficiais indiquem a existência de apenas 15 mil núbios no Quênia, o conselho de anciãos núbios impugnou esse número. Yusuf Diab, secretário desse órgão, afirmou que em 2009 havia pelo menos cem mil núbios neste país da África oriental.

Dong ‘ afirma que a maioria dos núbios vive em Kibera, mas outros estão espalhados por todo o país nas principais cidades. “Ainda estamos crescendo em número. É lamentável que enquanto os britânicos colocaram os núbios em mais de 1.600 hectares de terra, agora só nos sejam oferecidos 116 hectares”, acrescentou.

O ativista pelos direitos humanos Felix Omondi, da organização Bunge la Wananchi (O Parlamento do Povo) afirma que há muito em jogo com relação à propriedade da terra em Kibera. “É terra de primeira qualidade devido à sua proximidade com a cidade de Nairóbi. Existem muitos interessados criados em Kibera. Também tem poderosos investidores interessados.

Em setembro de 2013, o ministro de Terras, Charity Ngilu, declarou que a terra nos bairros de Kisumu Ndogo, Gatwekera, Laini Saba e Kianda já foi vendida. Ninguém sabe quem é o proprietário”, afirmou. Para Omondi, há mais perguntas do que respostas. “Quem vendeu esta terra, o governo ou os núbios? Além disso, a Autoridade Nacional de Gestão Ambiental tem planos para desalojar os moradores de Kibera que vivem perto do rio Ngong”, ressaltou.

“Além disso, a ferrovia entre Quênia e Uganda atravessa o assentamento e com o recente acidente de dezembro, quando um trem descontrolado bateu em várias casas, há planos para demolir algumas próximas à via férrea”, acrescentou o ativista.

Embora o censo de 2009 indique a existência de 170 mil pessoas em Kibera, o Centro Jurídico de Kibera calcula que há mais de um milhão de habitantes amontoados em um espaço menor do que o Central Park de Nova York. A enorme população de Kibera converte seus moradores em uma circunscrição eleitoral de vital importância para os políticos. “A maioria pertence à comunidade luo e exerce uma influência importante sobre a política no condado de Nairóbi”, explicou Omondi.

“O assentamento também oferece jovens dispostos a participarem de manifestações políticas em troca de dinheiro, e inclusive sofreu violência durante as disputadas eleições presidenciais de 2007”, acrescentou o ativista. Naquela ocasião, os enfrentamentos tribais deixaram mais de mil mortos em todo o país. “Houve uma enorme violência e derramamento de sangue em Kibera, mas nenhuma nas casas de classe média vizinhas”, assegurou Omondi.

Para Otieno, a situação é tão volátil que se não for bem manejada poderá levar a um derramamento de sangue. “As pessoas daqui estão dispostas a lutar pelo que é seu. Durante a violência (de 2007), muitos locatários perderam o controle sobre suas casas e desde então não puderam cobar o aluguel dos inquilinos. Os que se aferram à sua propriedade não a deixarão ir”, ressaltou.

Apesar das tensões recentes, a batalha para que Kibera fique registrada com propriedade dos núbios não é nova. “Começou em 1938. Desde antes da independência do Quênia (em 1963), Kibera já era terra impugnada”, detalhou Diab.

Embora em 1971 o Parlamento tenha aprovado uma lei requerendo que o Estado delimite as parcelas e outorgue títulos de propriedade aos legítimos proprietários de Kibera, o plano nunca foi implantado. Em 2009, o governo iniciou um programa de reassentamento para colocar os moradores de Kibera em casas que o governo construiu não longe do bairro pobre, mas o projeto foi recebido com controvérsia e resistência similares. Envolverde/IPS