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Descendentes de escravos denunciam agressões militares no Brasil

Protesto dos quilombolas de Rio dos Macacos contra a ocupação de sua terra e a violação de seus direitos pela base naval. Foto: Coha.org
Protesto dos quilombolas de Rio dos Macacos contra a ocupação de sua terra e a violação de seus direitos pela base naval. Foto: Coha.org

 

Rio de Janeiro, Brasil, 15/1/2014 – Descendentes de antigos escravos da comunidade Rio dos Macacos, na Bahia, denunciaram junto à Organização das Nações Unidas (ONU) agressões militares da base naval Aratu, que ocupa suas terras. Um dos líderes do quilombo e sua irmã, Ednei Messias e Rosimeire dos Santos, afirmaram que foram golpeados por militares no dia 6 deste mês, diante das filhas dela, antes de serem detidos por quatro horas, até que organizações humanitárias conseguiram que fossem libertados.

Ednei, de 28 anos, contou à IPS que o incidente foi o mais recente episódio das frequentes ameaças e intimidações que sofrem as 70 famílias residentes no quilombo, comunidades coletivas remotas onde se assentaram escravos afrodescendentes que conseguiam fugir ou obtinham a liberdade.

No dia 10 deste mês, organizações humanitárias apresentaram o caso ao Grupo de Trabalho de Especialistas da ONU sobre afrodescendentes e a outras três entidades das Nações Unidas. Também preparam a documentação para denunciar a agressão perante a Comissão Interamericana dos Direitos Humanos (CUDH).

Em Rio dos Macacos lutam há cinco décadas para conseguirem o título de propriedade de sua terra, localizada na península São Tomé de Paripe, nos limites entre os municípios de Simões Filho e a capital, Salvador. Há dados da existência do quilombo desde há 150 anos e vestígios de escravos refugiados ali desde há 238 anos. A escravidão no Brasil foi abolida em 1888, décadas após a independência de Portugal, em 1822.

A área de 300 hectares é centro de uma disputa judicial e territorial desde a década de 1960, quando, durante a ditadura militar (1964-1985), foi ocupada pelas forças armadas, que estabeleceram ali uma base naval e uma vila para os militares e suas famílias.

Há dois anos a justiça decidiu a favor da comunidade, mas o Estado apelou da sentença e enquanto isso os quilombolas (habitantes do quilombo) continuam forçados a atravessar a vila para ir e vir de sua comunidade. “A violência é constante, nos tiram o direito de ir e vir da comunidade, inclusive muitas vezes as ambulâncias não podem entrar para prestar auxílio médico”, detalhou Ednei.

Ele e sua irmã Rosimeire, de 35 anos, denunciaram que foram agredidos por militares navais com socos, e ameaçados com armas de fogo. Ela também foi vítima de agressões sexuais. Tudo começou quando foram abordados por soldados da vila naval, ao retornarem de um município próximo, onde matricularam as filhas de Rosimeire, de 17 e seis anos, para o próximo ano letivo.

“Um sargento, que já nos ameaçara antes, e outros cinco homens armados abriram à força a porta do meu automóvel e começaram a me bater. Minha irmã também apanhou muito, até ficar seminua. As meninas estavam aterrorizadas”, contou Ednei. Os dois irmãos foram soltos somente quando funcionários da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e advogados de movimentos afro-brasileiros foram até o local.

Paradoxalmente, a base naval de Aratu é o destino preferido dos presidentes brasileiros para descansar no recesso de final de ano. A presidente Dilma Rousseff esteve no lugar até dia 5, véspera da denunciada agressão.

“Não confiamos mais no governo. Não se entende porque, no Brasil atual, a tortura continue acontecendo como em tempos de escravidão. Ainda estamos lutando por nossa carta de alforria”, protestou Rosimeire. “Já não saio com minhas filhas por medo de ser morta na frente delas. Nos disseram que quando tirassem o uniforme iam arrebentar nossas cabeças a tiros”, acrescentou.

“Dois homens se puseram sobre mim, um colocou minha cabeça entre suas pernas, com minhas calças já baixadas e meus seios à mostra. Foi uma humilhação total, com uma arma em minha cabeça cuspiam no meu rosto”, continuou Rosimeire, ainda angustiada. Depois afirmou que em Rio dos Macacos “pode acontecer um verdadeiro massacre”, se não acabar a violência cotidiana que suportam. “Nosso território não se vende, não se troca e tampouco se negocia. Sou daqui, nasci, cresci e é aqui que vivo, onde minha mãe tem enterrada nossa família”, ressaltou emocionada.

Na Relatoria Técnica de Identificação e Delimitação, concluída em agosto de 2012 pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, foi constatado que os moradores da comunidade descendem de escravos de fazendas que produziam açúcar para o engenho de Aratu durante o período colonial. Mas a comunidade continua sem obter a titularidade de seus 300 hectares, aos quais tem direito por ser remanescente de quilombo.

Em outubro de 2012, um tribunal federal decidiu a favor da desocupação da área pela marinha, mas o processo está bloqueado enquanto se resolve a apelação apresentada pela Defensoria Pública, que no dia 8 deste mês pediu à marinha que esclareça com urgência o ocorrido com Ednei e Rosimeire.

No dia seguinte, um grupo de movimentos sociais lançou um manifesto contra as agressões aos residentes da comunidade, no qual defende o reconhecimento do quilombo e de sua terra. Também exigiu a construção de uma rota de acesso ao quilombo que não atravesse a vila naval, para evitar o agressivo controle militar da entrada e saída de seus moradores.

No dia 10, três dessas organizações denunciaram o caso junto a três relatorias especiais da ONU: da Esfera dos Direitos Culturais, da Moradia Adequada, da Situação dos Defensores dos Direitos Humanos, além do Grupo de Trabalho sobre Afrodescendentes, que visitou o país em dezembro.

“Nesta comunidade não se nota que a ditadura militar acabou”, queixou-se à IPS a advogada Marisa Viegas, da Justiça Global, uma das organizações denunciantes. “Os militares continuam agindo de forma repressiva contra os residentes e estes não podem manter mínimas condições de vida”, acrescentou. Essa organização acompanha o caso de Rio dos Macacos há uma década. Segundo a advogada, foram atacadas duas pessoas que defendem os direitos humanos do quilombo.

Segundo Marisa, os direitos culturais, de moradia e de liberdade estão em xeque nessa comunidade e os quilombolas sofrem com a restrição de seus direitos porque não podem circular livremente, nem receber visitas ou construir moradia adequada. A Constituição brasileira reconhece o direito das comunidades quilombolas, recordou . “Mas, na prática, se faz o contrário, ao se pressionar para que as pessoas deixem suas terras”, denunciou.

Marisa afirmou que o Estado descumpre compromissos internacionais de não violar nem deixar que violem os direitos dos moradores dos quilombos. “Neste caso é o próprio Estado que os viola, o que é duplamente grave”, enfatizou.

Um comunicado da Marinha informou que está sendo feita uma investigação sobre a denúncia com o auxílio do Ministério Público, “para determinar os fatos, as circunstâncias e as responsabilidades”. Além disso, a instituição ressaltou que a investigação será feita “com transparência e imparcialidade”, acrescentando que os militares acusados do ataque estão preventivamente afastados de suas funções. Envolverde/IPS