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Caso de esterilização forçada no Peru não acabou

Alberto Fujimori. Foto: http://www.diariodoscampos.com.br/
Alberto Fujimori. Foto: http://www.diariodoscampos.com.br/

Lima, Peru, 10/2/2014 – O arquivamento do caso de esterilização forçada de mais de duas mil mulheres no Peru durante o regime de Alberto Fujimori representou uma surpreendente mudança do promotor encarregado. O que aconteceu? Esta investigação da IPS confirma que as vias jurídicas não estão esgotadas.

O promotor Marco Guzmán Baca emitiu em 24 de janeiro a resolução que pôs fim nessa instância à investigação das esterilizações forçadas praticadas no Peru entre 1996 e 2000. Nela afirma não denunciar penalmente Fujimori (1990-2000) e nem três ex-ministros da Saúde e outros funcionários acusados de responsabilidade no crime.

“Nos levaram em caminhões. Entramos inocentes e contentes. Mas ouvíamos gritos e corri. As portas estavam fechadas com cadeado. Me levaram em uma maca, amarraram meus pés e me cortaram”, contou à IPS a vítima Micaela Flores Bañares, da província de Anta, na região de Cusco, que na época tinha sete filhos. Eram cerca de 30 mulheres que foram ao centro de saúde sob uma enganosa campanha para um exame geral, acrescentou.

A decisão do promotor apenas determina processar o pessoal de saúde do departamento de Cajamarca, ao norte. As esterilizações foram parte do Programa de Anticoncepção Cirúrgica Voluntária (AQV) criado por Fujimori e sua equipe para reduzir drasticamente a natalidade nas áreas mais pobres do país e que afetou sobretudo mulheres rurais de língua quechua.

Como titular da Segunda Promotoria Penal Supraprovincial, Guzmán assumiu o caso em julho de 2013, depois que as investigações foram reabertas em novembro de 2012. O processo, atualmente com 142 volumes, é de longa data. Em maio de 2009, a promotoria já havia arquivado a investigação contra os ex-ministros e outros funcionários, apesar dos reiterados pedidos do sistema interamericano de direitos humanos.

Em 2003, o Estado peruano e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CUDH) assinaram um Acordo de Solução Amistosa, pelo qual o Peru aceitou indenizar a família de María Mamérita Mestanza, que morreu após ser esterilizada em Cajamarca. Também se comprometeu a investigar e julgar as autoridades que planejaram e executaram esterilizações forçadas.

Após anos de idas e vindas, as organizações de direitos humanos viram uma luz no interesse de Guzmán em investigar Fujimori como autor mediato dessa prática generalizada e sistemática. No final de novembro, o promotor avisou que havia “indícios reveladores da suposta participação nos fatos de Alberto Fujimori”, por isso ampliou a investigação sobre o caso Mestanza e outros.

A advogada Rossy Salazar, da organização Demus e defensora das vítimas, informou à IPS que esta advertência do promotor figura na folha 60277, parte de um relatório do caso dirigido ao promotor Víctor Cubas, coordenador das promotorias de direitos humanos.

Guzmán admitiu em entrevista à IPS ter assinalado que ‘havia indícios da participação de Fujimori”. Na época o promotor já havia ouvido mais de 500 vítimas, principalmente dos departamentos de Piura (nordeste) e Cusco (sul), embora em sua resolução de 131 páginas diga que só pôde interrogar pouco mais de uma centena. Além disso, Guzmán tinha evidências de que se tratou de um plano com metas, incentivos e até sanções, para o pessoal que não cumprisse as cotas de esterilização, segundo documentos obtidos por órgãos governamentais que investigaram o caso.

A Demus invocou esses documentos oficiais no recurso de queixa que apresentou em 28 de janeiro contra a decisão do promotor, diante do próprio órgão de acusação pública. O recurso menciona cartas que o ex-ministro da Saúde Marino Costa Bauer enviou a Fujimori em 1997. No oficio Nº SA-DM-0722/97, Bauer informa ao presidente sobre o aumento na produção de serviços de AQV “e que devemos estar fechando o ano de 1997 com uma produção total bem perto da meta”.

A IPS perguntou ao promotor: Por que, depois determinar em novembro que havia indícios da participação de Fujimori, o senhor acaba excluindo o ex-presidente desta responsabilidade pouco depois? Ele respondeu: “Para poder examinar tinha que interrogá-lo. O fiz e ele respondeu algumas perguntas, outras não. Em algumas invocou o silêncio. Depois seu defensor juntou os documentos. Isso era importante porque nunca antes se havia entrevistado Fujimori para este caso”.

O interrogatório de Fujimori, em 15 de janeiro na prisão Barbadillo, onde cumpre pena de 25 anos por crimes de direitos humanos, durou entre duas e três horas. Uma semana depois o promotor arquivou a investigação contra o ex-presidente. “Foi determinante essa entrevista para decidir se ele teve participação no caso?”, insistiu a IPS. “É algo que foi considerado, mas não determinante. O determinante é o pacote normativo que tenho de aplicar. Não há um suporte normativo que reforce a imputação”, explicou.

O promotor argumenta que a legislação peruana não tipifica como crime a esterilização forçada, por isso não representa um suporte legal. Em sua resolução diz que os fatos denunciados não constituiriam crimes de lesa humanidade, aplicados em um ataque generalizado ou sistemático contra uma população civil, e que não prescrevem.

No plano internacional, o Estatuto de Roma, constitutivo do Tribunal Penal Internacional, contempla o crime de esterilização forçada. O Estatuto só entrou em vigor em julho de 2002 no Peru, depois de consumados os fatos e iniciadas as denúncias, mas “desde o começo da década de 1990 a comunidade internacional já considerava a esterilização forçada como crime”, insistiu Salazar.

Em seu recurso, a Demus argumenta que a resolução do promotor “não esgota a investigação penal. É só o passo inicial da busca da verdade” e não fecha a fase probatória. Por isso, pede que uma instância superior acuse para que o caso continue. Outra via para reabri-lo seria a introdução de uma nova denúncia de uma vítima. Além  disso, a Demus projeta apresentar a situação à CIDH em março.

Em 31 de janeiro, Guzmán publicou um artigo no jornal El Comércio afirmando que “a única maneira de responsabilizar Fujimori é com a autoria mediata e, segundo o Tribunal Constitucional, não concorrem os requisitos desta, já que no caso não há estrutura rígida vertical, pois não é possível obrigar um médico a operar contra sua vontade. São casos isolados”, pontuou à IPS.

Segundo o Ministério da Saúde, entre 1993 e 2000 foram praticadas 346.219 esterilizações femininas e 24.535 masculinas, 55,2% delas feitas no biênio 1996-1997. Nesse período foram feitas 262 ligaduras de tubas uterinas (antes chamadas de trompas de Falópio) por dia, em média. Do total, ficou estabelecido que cerca de duas mil pessoas foram esterilizadas enganadas ou sob ameaça. As mulheres de Cusco figuram entre as mais afetadas porque ali houve quase cinco operações por dia, segundo o Ministério da Saúde e testemunhos das vítimas.

Sabina Huillca Cóndor, da comunidade de Huayapacha, em Cusco, contou à IPS que ela foi ao centro de saúde de Anta para dar à luz à sua filha Soledad, mas o parto acabou acontecendo no caminho. As enfermeiras lhe disseram que deveria ficar para ser tratada a fim de evitar uma infecção.

No dia seguinte Sabina acordou chorando, com terrível dor, um corte perto do umbigo e amarrada na cama. Depois fugiu para seu povoado, limpou o ferimento com sabão de lavar roupa e tirou os pontos como pôde, e foi onde sua mãe disse para se tratar com ervas. “Agora tenho câncer, e junto sangue seco no ovário”, contou enquanto mostrava seu corte escuro no ventre. Envolverde/IPS