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Preços argentinos em alta ameaçam ampliar desigualdade

Supermercados e outros comércios de alimentos e produtos básicos da Argentina aderiam ao programa de Preços Cuidados. Foto: Fabiana Frayssinet/IPS
Supermercados e outros comércios de alimentos e produtos básicos da Argentina aderiam ao programa de Preços Cuidados. Foto: Fabiana Frayssinet/IPS

 

Buenos Aires, Argentina, 21/2/2014 – Convocados pelas redes sociais, muitos consumidores da Argentina começaram a se mobilizar contra a escalada de preços que coloca em risco avanços importantes do país em matéria de redução de pobreza e desigualdade social. A proposta do “apagão de consumo” teve resultados animadores, segundo algumas associações de consumidores e porta-vozes do governo.

Não há resultados quantificados. Mas a exortação para não comprar por 24 horas, no dia 7 deste mês, em supermercados, lojas de eletrodomésticos e postos de combustíveis, teve uma adesão de mais de 280 mil internautas e esvaziou de maneira visível muitos estabelecimentos. “Comecei a ir a vários lugares pesquisando preços. Há diferenças enormes”, contou à IPS a psicanalista Ester Vallez, que disse ter pago por uma chave 30% mais entre uma semana e outra, o que “obviamente, se transporta para outros produtos”.

“É preciso haver um controle do governo e entre todos buscar uma estratégia de pressão”, disse à IPS um trabalhador na área de manutenção, Javier Sequeira, que vive em La Matanza, oeste da Grande Buenos Aires. O que Sequeira ganha por quinzena não dá para atender sua família. Ele está pensando em se juntar com vizinhos para comprar alimentos mais baratos, no atacado, no Mercado Central. “Deixando de comprar alguns produtos caros, as fábricas começarão a sentir a diferença. Muitos usam o dólar como desculpa para se aproveitar”, lamentou Sequeira, pai de dois filhos e “outro a caminho”, que teve o aumento anual do salário tragado pela inflação.

O apagão do consumo se soma a outras iniciativas que, pelos meios de comunicação, convocam a comparar preços, denunciar quem os aumentam e controlar para que não faltem os produtos incluídos na lista de Preços Cuidados. Esta lista responde a um acordo entre o governo da presidente Cristina Fernández e as redes de abastecimento e comerciantes, para oferecer a preços acessíveis alimentos, bebidas, cosméticos, produtos de limpeza, de educação e de construção.

A mobilização contra os preços especulativos surgiu após a desvalorização da moeda argentina, o peso, que só em janeiro foi superior a 34% em relação ao dólar, na maior queda desde 2002, o que desencadeou aumentos indiscriminados. Em 2013, o valor oficial do peso caiu 25% diante do dólar, e no paralelo 47%, segundo empresas de consultoria. “É hora de todos os setores assumirem a responsabilidade que lhes cabe para que as coisas continuem funcionando”, convocou a presidente, ao criticar grupos de poder econômico que estimulariam ataques especulativos e a fuga de capitais.

Ernesto Mattos, economista do Centro de Pesquisa e Gestão da Economia Solidária, apontou à IPS que a desvalorização do peso é uma “desculpa” para aumentar os preços, especular e deteriorar o valor dos salários. Também destacou que, entre junho e dezembro, empresas que comercializam alimentos “já haviam aumentado em 200% seus preços”, mesmo os de muitos produtos que não têm insumos importados.

Segundo o Instituto Nacional de Estatísticas e Censos, a inflação de 2013 foi de 10,9%, enquanto consultorias privadas a estimam em 28,3%. Segundo Mattos, “não está em jogo apenas a especulação e o salário dos trabalhadores, mas um projeto nacional e o tipo de país que se deseja”. Um país a serviço das grandes transnacionais ou um país capaz de abastecer suas necessidades básicas e “de unir forças” com o resto da região “para avançar na inclusão social e reduzir as brechas de desigualdade”, enfatizou.

O economista defende a participação popular no controle de preços nos supermercados, porque ali se constrói o “padrão de consumo dos argentinos nas grandes cidades”, e a criação de “mecanismos de denúncia que permitam sancionar empresas não só na fase de comercialização, mas também na de produção”. Vallez exortou o governo “a colocar mais gente na rua para controlar os preços, e que nós, como cidadãos, façamos nossa parte, não abaixando a cabeça, denunciando e não comprando produtos superfaturados”.

O governo respondeu com uma artilharia de medidas para contrapor aos resultados da desvalorização e do descontentamento social por seus efeitos nos preços. Além do Preços Cuidados, instrumentou novos programas sociais, como Progresar (Progredir), que destina uma quantia mensal a jovens desempregados ou com empregos precários entre 18 e 24 anos para que iniciem ou completem seus estudos.

Segundo a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), a Argentina é o país com menor pobreza na região (4,3%) e o segundo, atrás do Uruguai, com menor nível de indigência (1,7%). Em dezembro, segundo a Cepal, a Argentina apareceu como um dos que mais diminuíram a desigualdade na região no período 2008-2012. Mas a deterioração salarial e do poder de compra pode reverter esses êxitos.

“A redução da desigualdade durante a última década tem como principal fonte o aumento do componente de renda não oriundo do trabalho (como subsídios e outras ajudas) nas famílias mais pobres, mas não melhorou a renda com trabalho nesses mesmos extratos”, afirmou Agustín Salvia, diretor do Programa Mudança Estrutural, do Instituto de Pesquisa Gino Germani, da Universidade de Buenos Aires. A escalada inflacionária tenderá a aumentar a pobreza e também a desigualdade, acrescentou à IPS.

Isso “justamente pelo empobrecimento dos setores assalariados e não assalariados menos protegidos pelas regulamentações trabalhistas”, destacou Salvia, também pesquisador do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas. Apesar das medidas governamentais para neutralizar o impacto, não se poderá “impedir um efeito regressivo para os trabalhadores dos setores informais” e inclusive para os aposentados.

“O governo deve cuidar firmemente para que a inflação não gere maior dispersão de renda, aprofundando as políticas existentes para esses setores”, pontuou à IPS a economista e especialista em política Jimena Valdez. A seu ver, “toda essa situação se agravaria diante de uma escalada na inflação, por isso deve estar entre os interesses primordiais do governo que isso não aconteça”.

Para evitar essa situação, segundo Valdez, o governo pode convocar um diálogo com empresários e sindicatos, para discutir políticas trabalhistas e aumentos salariais. Também deveria atualizar os valores destinados pelos programas sociais de acordo com a inflação. Salvia considera “muito importante conscientizar e mobilizar a opinião pública, e pressionar os formadores de preços para que não haja nenhum transbordamento”. Porém, recordou, o movimento dos preços “será determinado, fundamentalmente, por fatores como a massa monetária, o nível de demanda (em baixa), desvalorização e expectativas inflacionárias”.

Déficit de justiça para os consumidores

Sandra Collado, presidente da Ação do Consumidor (Adelco), considera que é preciso afinar o cumprimento das leis que defendem os consumidores. “Um passo fundamental que o Estado deve dar é implantar uma justiça gratuita de pequenas causas ou de menor valor”, para que o consumidor prejudicado possa ter onde reclamar, opinou à IPS. Por exemplo, um eletrodoméstico com sobrepreço, cujo valor é inferior ao que está sendo vendido, deve ser denunciado judicialmente.

A Adelco não aderiu ao “apagão de consumo” por considerar que essas iniciativas são efetivas apenas quando destinadas a produtos e empresas identificadas previamente. “Hoje ninguém sabe ao certo se houve mais ou menos venda de alguns produtos e qual foi o impacto no volume de vendas de uma empresa ou marca em particular”, observou Collado. Envolverde/IPS