Bouwer, Argentina, 10 de março de 2014 (Terramérica).- Enquanto as luxuosas escolas de samba do Brasil preparavam o grande carnaval do Rio de Janeiro, um humilde grupo percorreu um pequeno povoado argentino para alertar sobre um problema urbano subestimado: o lixo. A província de Córdoba está à beira do colapso sanitário. A 2.300 quilômetros do Rio de Janeiro, o grupo Cor e Alegria, do povoado cordobês de Bouwer, se concentrou aos pés de uma réplica do Cristo Redentor carioca.
Entretanto, a cruz deste lugar de dois mil habitantes é outra. Depois de uma longa luta para fechar em 2010 um lixão a céu aberto que acumulou 12 milhões de toneladas de resíduos, Bouwer está novamente diante do perigo de que outro seja aberto, o que agravaria a contaminação crônica da região. Os 24 milhões de toneladas de lixo que a capital provincial e outros municípios gerarem durante os próximos 30 anos seriam depositados em uma área de 270 hectares, a apenas 600 metros do velho lixão.
“O carnaval tem de servir para as pessoas, e hoje estamos aqui para conscientizar sobre o que acontece com lixo”, disse ao Terramérica o diretor do grupo, Sergio Moggi, formado por crianças e adolescentes. O grupo foi uma das atrações do Festival da Contaminação que os moradores organizaram para chamar a atenção sobre seu drama. Um dos critérios para instalar o novo lixão foi o valor do uso do solo, e Bouwer sai perdendo, porque é pobre.
Em seus arredores também há restos de uma fundição de chumbo, de uma unidade de armazenamento de resíduos perigosos, um depósito judicial de veículos e pesticidas das plantações vizinhas. A Fundação para a Defesa do Meio Ambiente (Funam) considera que Bouwer “é uma das áreas mais contaminadas da Argentina”. A grande quantidade de fontes contaminantes e as alarmantes taxas de mortalidade infantil e perinatal levaram o município a se declarar em “emergência sanitária”.
“Nessa época do verão, cada povoado de Córdoba tem festivais por algo emblemático que o representa: o salame, a batata… O que nos caracteriza, tristemente, é a quantidade de lixo”, disse ao Terramérica a professora Daniela Arce, da associação de moradores Bouwer Sem Lixo. E os problemas de Bouwer são os desta província, que tem uma extensa e fértil planície no leste e cadeias montanhosas a oeste, as Serras de Córdoba.
A capital de mesmo nome e sua área metropolitana geram cerca de 2.200 toneladas diárias de lixo sólido, segundo a Corporação Intercomunitária para a Gestão Sustentável dos Resíduos da Área Metropolitana de Córdoba (Cormecor), uma sociedade anônima que estuda alternativas técnicas para o manejo e a disposição final do lixo da cidade e de outros 16 pequenos municípios.
“Essa realidade gera uma demanda de tecnologia e espaço para seu tratamento e disposição, que até hoje não se trabalha de maneira integral”, diz a Cormecor em seu site. Seus principais acionistas são a cidade de Córdoba, outros nove municípios e comunidades, e o sindicato de coletores.
A prática usual era enterrar ou jogar os dejetos em lixões a céu aberto, até que, em 1981, começaram a enviar para o lixão de Bouwer. Fechado este depósito em 2010, que ainda contém o lixo de quase 30 anos, os resíduos começaram a se acumular em uma área transitória, Piedras Blancas, à margem da rodovia nacional 36 e a apenas cinco quilômetros de Bouwer.
Piedras Blancas recebe 2.500 toneladas diárias desde 2010 – quando sua vida útil foi estimada em um ano – e está à beira do colapso, segundo as autoridades. “O lixo é depositado diariamente, compactado e se joga terra por cima ao final de cada dia. Os gases emanados não são captados nem tratados, e tampouco são tratados os lixiviados” (líquidos da decomposição da matéria orgânica), afirmou ao Terramérica a encarregada de imprensa da Funam, Nayla Azzinnari.
Agora o governo provincial se apressa em expropriar dois terrenos para o novo projeto: a área próxima ao castigado Bouwer e outro para instalar uma unidade de transferência perto do povoado Estación Juárez Celman, no centro-norte da província. Enquanto a Cormecor avalia propostas de 27 empresas (de Argentina, Holanda, Estados Unidos e Brasil) e de universidades para o tratamento do lixo, os que sofrem na própria carne o problema têm algumas respostas.
“Cada povoado deveria cuidar de seu lixo. A municipalidade de Córdoba deveria se ocupar do seu, assim como os demais municípios”, opinou ao Terramérica o intendente de Bouwer, Juan Lupi. Seu povoado produz menos de meio caminhão por semana, enquanto a capital gera 95% do total. Para o biólogo Ricardo Suárez, assessor técnico de Bouwer, o lixo deve ser contemplado desde sua origem. “O nosso problema é enorme”, destacou.
Os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário deveriam intervir para promover um consumo comedido e exortar as empresas a venderem seus produtos com menos elementos de descarte, sugeriu Suárez. Também é preciso uma justiça que puna crimes ambientais, como não tratar o lixo, e um forte investimento municipal para implantar planos de separação e reciclagem e para educar os cidadãos nesses novos hábitos.
“Podemos conseguir limites (de contaminação) bem baixos e toleráveis. O que não podemos aceitar é que sejam enterrados, como agora, 12 milhões de toneladas em um mesmo lugar”, ressaltou Suárez. Por isso, o lixo deve ser “descentralizado”, para que não continue havendo “zonas de sacrifício” como Bouwer, pontuou ao Terramérica.
“A primeira coisa é sentar e estudar, e não subestimar o lixo”, disse o engenheiro químico Eduardo Riaño, que analisou os efeitos das emissões gasosas e líquidas de Bouwer, que persistem mesmo décadas depois de fechado o lixão. “Os compostos orgânicos voláteis são muito perigosos” e podem causar câncer, explicou ao Terramérica.
Por outro lado, esses depósitos de matéria orgânica também poderiam gerar energia. Do biogás emitido pelo lixão de Bouwer se deduz que “o gerado até seu fechamento em 2010 equivaleria a um ano e meio de gás de uso doméstico e a dois anos e meio de gás natural comprimido” para a população local, afirmou Riaño.
Para a legisladora provincial Cintia Frencia, do esquerdista Partido Operário, há interesses econômicos que impedem o tratamento e a reciclagem. “Não é por acaso que se decida depositar o lixo nas cidades mais pobres vizinhas de Córdoba”, disse ao Terramérica. “Hoje se fala em fazer um novo aterro com prazo de 30 anos. Isso significa que em três décadas não pensam em desenvolver nenhum tipo de tecnologia para reduzir e tratar o lixo, e que simplesmente é um negócio”, enfatizou.
A Cormecor é uma sociedade anônima que busca ser cotada na Bolsa de Valores Argentina. O lixo é um negócio em todo o mundo. Em lugares como a Itália beneficia tanto as empresas quanto as máfias que as manejam. O Terramérica não conseguiu resposta da Cormecor nem das secretarias ambientais do governo provincial nem da cidade. Envolverde/Terramérica
* A autora é correspondente da IPS.
Artigos da IPS
Lixo Zero em Bogotá com futuro incerto como o prefeito
Negócio italiano dos resíduos tóxicos vai de vento em popa
Artigo produzido para o Terramérica, projeto de comunicação apoiado pelo Banco Mundial Latin America and Caribbean, realizado pela Inter Press Service (IPS) e distribuído pela Agência Envolverde.