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O mar traga as histórias dos africanos afogados em Ceuta

Manifestantes com tochas e cartazes que dizem: “Chega de mortes nas fronteiras”, em Málaga, no dia 12 de fevereiro, para pedir uma investigação sobre as mortes de 16 imigrantes seis dias antes em Ceuta, enclave espanhol no norte da África. Foto: Inés Benítez/IPS
Manifestantes com tochas e cartazes que dizem: “Chega de mortes nas fronteiras”, em Málaga, no dia 12 de fevereiro, para pedir uma investigação sobre as mortes de 16 imigrantes seis dias antes em Ceuta, enclave espanhol no norte da África. Foto: Inés Benítez/IPS

 

Málaga, Espanha, 10/3/2014 – “Quem falará por eles agora? Quem contará sua história às suas famílias em Camarões e Costa do Marfim?”, perguntou o nigeriano Edmund Okeke a respeito dos 16 imigrantes mortos quando tentavam alcançar a nado a costa da cidade espanhola de Ceuta, partindo do Marrocos. As vítimas foram repelidas com balas de borracha por efetivos da militar Guarda Civil espanhola a partir da praia do enclave espanhol no norte da África, no dia 6 de fevereiro.

“São pessoas em condições insuportáveis de pobreza em busca de uma vida melhor. Por que, então, iam querer deixar seu país e empreender uma viagem tão longa e arriscada?”, questionou Okeke, presidente da associação de Imigrantes de Palma-Pamilla da cidade espanhola de Málaga.

Okeke vive aqui há 14 anos e considera “injustificável” a atuação das autoridades fronteiriças espanholas. Por isso, disse à IPS, pede ao governo do direitista Mariano Rajoy uma investigação “correta” e o julgamento “de quem deu a ordem para disparar” contra pessoas que “não eram agressivas nem representavam uma ameaça para ninguém”. Os 16 imigrantes se afogaram, quando dezenas deles se lançaram ao mar para tentar chegar até Ceuta contornando a nado o espigão que separa as águas marroquinas e espanholas.

O ministro do Interior, Jorge Fernández Díaz, reconheceu, no dia 13 de fevereiro, em depoimento no parlamento, que as autoridades dispararam balas de borracha e gases da terra para a água. “Mas não contra as pessoas”, destacou sobre os fatos que a promotoria investiga, após a denúncia apresentada por cerca de 20 organizações não governamentais.

Díaz visitou nos dias 5 e 6 deste mês Ceuta e Melilla, a outra cidade autônoma espanhola no norte africano. Ali anunciou o reforço com redes especiais dos obstáculos que separam os enclaves do Marrocos, para dificultar ainda mais a escalada dos imigrantes.

A cada ano, milhares de africanos, majoritariamente subsaarianos, tentam chegar à União Europeia (UE) cruzando a tríplice barreira arrematada por pontas que separa o território marroquino de Ceuta e Melilla, e viajando em pequenas embarcações desde o Marrocos ou partindo de seus países de origem. Mas cruzar a nado foi uma opção ainda mais desesperada.

A nigeriana Tina Akrasubi, de 34 anos, partiu de sua casa em Benin, há 13 anos, com destino à Espanha, pensando em ajudar sua família. “Fui de carro com uma amiga até Mali e dali a pé até o Marrocos para cruzar rumo a Ceuta”, contou à IPS enquanto ninava sua filha Glória, de dois meses. Muitos subsaarianos empregam anos para chegar ao Marrocos.

Cada um dos homens que morreram afogados, todos jovens, tem sua história, talvez mães que esperam um telefonema que não chegará, mas “parece que isto não importa nada quando se é pobre”, lamentou Okeke em conversa com a IPS. Os cinco cadáveres que ficaram do lado espanhol da barreira fronteiriça jazem em túmulos sem nome em um cemitério de Ceuta, os demais foram levados para necrotérios marroquinos.

O governante Partido Popular rejeitou no Congresso a abertura de uma comissão de investigação sobre a tragédia. A comissária europeia do Interior, Cecilia Malmström, afirmou, em carta dirigida ao ministro Díaz, que “as balas de borracha podem ter causado pânico entre os imigrantes” que nadavam rumo à margem e desencadeado suas mortes.

Cerca de 80 mil imigrantes, 40 mil no Marrocos e outros tantos na Mauritânia, esperam para entrar na União Europeia através de Ceuta e Melilla, assegurou o ministro no dia 4, segundo dados fornecidos pelo Marrocos. “O governo tenta criar alarme social e criminaliza os imigrantes para justificar suas atuações e reduções em matéria de direitos de estrangeiro”, afirmou à IPS o sindicalista Gerardo Cova, que entre 2001 e 2007 dirigiu o Centro de Informação de Trabalhos Estrangeiros no balneário de Marbella.

Em 2013, nos 28 países membros da UE, cerca de cem mil imigrantes foram interceptados enquanto cruzavam fronteiras marítimas e terrestres. A Espanha é a quarta rota em número de imigrantes ilegais, segundo dados de dezembro da Agência Europeia de Controle de Fronteiras (Frontex), citados por seu diretor-adjunto, Gil Arias. “Em lugar de socorrê-los, foram tratados como animais”, lamentou à IPS a presidente da União de Mulheres Nigerianas em Málaga, Christiana Nwokeji, em sua casa. Enquanto falava, a televisão mostrava um vídeo com vários sobreviventes que tentavam nadar até a margem de Ceuta para serem imediatamente devolvidos ao Marrocos.

Nwokeji recordou que os espanhóis também estão emigrando diante dos exorbitantes níveis de desemprego devido à crise econômica e às novas facilidades para demitir empregados. “Todo mundo emigra diante da falta de oportunidades”, pontuou. “Nasci em crise. Vivemos sempre em crise”, disse à IPS o senegalês Gora Ndiaye, de 28 anos, que passou “muito medo e muito frio” na embarcação que o levou por uma semana, junto com outros 45 compatriotas, desde Dakar até o município espanhol de Hoya Fría, na ilha de Tenerife, nas Canárias.

Ndiaye, com sua mulher e um filho de seis meses no Senegal, reclamou que “as pessoas daqui precisam ajudar a África”, e justificou a migração “por que não temos comida, temos que mandar dinheiro para nossas famílias. Não se pode viver sem nada”. Ele acrescentou que “as noites são terríveis. As ondas como montanhas. Se sente pontadas nos braços e nas pernas”, contou este imigrante que não sabe nadar e pagou 500 euros (US$ 693) por uma travessia na precária embarcação. “Tenho sorte de estar aqui contando isso”, afirmou.

Segundo o Balanço Migratório na Fronteira Sul de 2013, apresentado em fevereiro pela Associação Pró-Direitos Humanos de Andaluzia, foram 7.550 os imigrantes interceptados que conseguiram chegar à Espanha em embarcações frágeis ou através de Ceuta ou Melilla. Os mortos e desaparecidos na tentativa foram 130 no ano passado.

O estudo indica que 45,25% dos imigrantes africanos, mais da metade subsaarianos, chegaram em embarcações frágeis e 27,4% em balsas infláveis. Cerca de 15,75% venceram os obstáculos de Ceuta e Melilla. No dia 28 de fevereiro, 200 imigrantes conseguiram superar a barreira de Melilla, comemorando sua chegada à UE com risos e abraços mostrados pela televisão.

Yvette Edere, da Costa do Marfim, disse à IPS que sente “um grande dó” pelo ocorrido em Ceuta e contou como é “difícil ter que lutar” para obter a residência na Espanha, onde chegou com um visto há 20 anos. “Muitos brancos da Europa e dos Estados Unidos vivem na África”, disse Okeke. Ele mesmo está ajudando alguns espanhóis que querem ir trabalhar na Nigéria. “Exploram seu ouro, seu petróleo, e ninguém dispara contra eles. Não há barreiras nem papéis. São recebidos como reis”, afirmou. Envolverde/IPS